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Obrigar publicação de demonstrações financeiras é ilegal

Obrigar publicação de demonstrações financeiras é ilegal

28/02/2014 04:29:28

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Obrigar publicação de demonstrações financeiras é ilegal

Com o advento da Lei 11.638/07, restou regulamentado o conceito de sociedade de grande porte para os fins de escrituração, elaboração e auditoria de suas demonstrações financeiras.

Contudo, as sociedades de grande porte, que não anônimas, continuaram a arquivar seus atos ordinários sem qualquer entrave nas Juntas Comerciais de todo país até 2013, quando passou a lhes ser exigida as publicações de suas demonstrações financeiras por força do duplo efeito em que foi recepcionada a apelação interposta na ação ordinária[1] movida pela Associação Brasileira de Imprensas Oficiais (Abio) contra a União Federal.

Esta demanda judicial encontra-se em sede de apelação, estando conclusa com o relator Nelton dos Santos desde 10 de dezembro de 2013. O mencionado recurso, após julgamento de Embargos de Declaração, foi recepcionado apenas sob efeito devolutivo.

Contudo, pouco importa qual efeito paira sobre o referido recurso, por se tratar de ação que segue o rito ordinário, só gerando a sentença efeito entre as partes integrantes da lide nos termos do artigo 472, do CPC[2], e reiterada jurisprudência do STJ[3].

Importante lembrar que quem figura na demanda em questão é a União, pessoa jurídica de direito público nos termos do Código Civil[4], e não o Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) e muito menos a Junta Comercial de quaisquer estados da federação.

Registre-se que tanto o DNRC quanto as Juntas Comerciais são entes próprios dotados de personalidade própria[5], o que fica cristalino ao se verificar que foram criados por leis específicas, que são:

· Lei 4.048/61, criou por seus arts. 17, II, e 20 o DNRC;
· Decreto 596, de 1890, criou a Junta Comercial do Estado de SP que, com a sanção da Lei Complementar Estadual 1.187/2012, foi transformada em autarquia especial;
· Criada pelo alvará de 23 de maio de 1808, a Junta Comercial do Estado do RJ transformou-se em autarquia estadual com o advento da Lei Estadual 1289/88;
· Lei 5.512, de 1970, transformou a Junta Comercial do Estado de MG em autarquia estadual, que nos termos da Lei Delegada 179/11 passou a integrar a Administração Indireta do Poder Executivo do estado de MG, dentre outras.

Não se pretende questionar, com o acima exposto, a vinculação administrativa das Juntas Comerciais às secretarias estaduais, ou sua subordinação técnica ao DNRC, pois isto encontra-se estatuído na Lei 8.934/94[6]. Este fato corrobora com o acima apresentado, pois, por mais uma forma, se demonstra que se tratam de pessoas jurídicas distintas, vez que caso se tratassem de uma única entidade não haveria o porquê de uma norma legal regular sua relação.

Dessa forma, tendo em vista o fixado pelo artigo 472, do CPC, torna-se inquestionável que a decisão proferida nos autos do processo intentado pela Abio face à União Federal não pode compelir as Juntas Comerciais a adotar determinada conduta, pois estas não são partes na referida demanda judicial.

Para que as Juntas Comerciais possam regularmente exigir que as sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, publiquem suas demonstrações financeiras, teria que cumulativamente existir:

1. Lei que exigisse a referida publicação (o que inexiste como se demonstra a seguir);
2. Ofício Circular, do DNRC regulamentando a exigência de publicação das demonstrações financeiras por parte das sociedades em comento (como o Ofício Circular 99/08, do DNRC o qual se encontra adequado à legislação positiva, vide exposição a seguir).

Evidencia-se, face ao disposto no art. 7°, do Decreto 1.800/96[7], que algumas Juntas Comerciais, como a do estado de Minas Gerais[8], vêm exigindo sem qualquer suporte em normas federais a publicação das demonstrações financeiras por parte das sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações.

Falta de previsão legal
A Lei 11.638/07, ao tratar acerca das demonstrações financeiras das sociedades de grande porte, prevê, literis.

“Art. 3°. Aplicam-se às sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras e a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários. (...)” (Grifos nossos.)

Depreende-se da leitura acima que a lei em momento algum exigiu a publicação das demonstrações financeiras, mas tão somente a escrituração e elaboração das mesmas como estabelecido na Lei 6.404/76.

A escrituração[9] é tratada em artigo próprio, na Lei 6.404/76, que fixa.

“Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.” (Grifos nossos.)

Dessa forma, inequívoco que escrituração de demonstrações financeiras não se constitui em gênero do qual a publicação faz parte, como também não se pode pressupor que a elaboração de demonstrações financeiras contemple a publicação das mesmas, pois a própria Lei 6.404/76 trata a elaboração como sendo um ato distinto da publicação como se pode depreender do trecho abaixo trazido.

“Art. 186. A demonstração de lucros ou prejuízos acumulados discriminará: (...)
§ 2º A demonstração de lucros ou prejuízos acumulados deverá indicar o montante do dividendo por ação do capital socialpoderá ser incluída na demonstração das mutações do patrimônio líquido, se elaborada e publicada pela companhia.” (Grifos nossos.)

Cristalino então que a Lei 11.638/07 nunca exigiu das sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, a publicação de suas demonstrações financeiras. Registre-se que se chega a esta mesma conclusão mediante à adoção da interpretação gramatical (acima trazida), pela interpretação teleológica, ou a histórica[10].

Inquestionável desta forma a legalidade do Ofício Circular 99/08, do DNRC, ao facultar a publicação das demonstrações financeiras às sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações.

Necessidade da publicação para arquivamento
Inobstante ao acima trazido, não se pode esquecer que o Decreto 1.800/96, ao regulamentar o art. 37, da Lei 8.934/94, estabeleceu taxativamente em seu parágrafo único quais documentos devem instruir os pedidos de arquivamento de atos societários, in verbis.

“Art. 34. Instruirão obrigatoriamente os pedidos de arquivamento:
I - instrumento original, particular, certidão ou publicação de autorização legal, de constituição, alteração, dissolução ou extinção de firma mercantil individual, e sociedade mercantil, de cooperativa, de ato de consórcio e de grupo de sociedades, bem como de declaração de microempresa e de empresa de pequeno porte, datado e assinado, quando for o caso, pelo titular, sócios, administradores, consorciados ou seus procuradores e testemunhas;
II - declaração do titular ou administrador, firmada sob as penas da lei, de não estar impedido de exercer o comércio ou a administração de sociedade mercantil, em virtude de condenação criminal;
III - ficha do Cadastro Nacional de Empresas Mercantis - CNE, segundo modelo aprovado pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio - DNRC;
IV - comprovantes de pagamento dos preços dos serviços correspondentes;
V - prova de identidade do titular da firma mercantil individual e do administrador de sociedade mercantil e de cooperativa: (...)
Parágrafo único. Nenhum outro documento, além dos referidos neste Regulamento, será exigido das firmas mercantis individuais e sociedades mercantis, salvo expressa determinação legal, reputando-se como verdadeiras, até prova em contrário, as declarações feitas perante os órgãos do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.” (Grifos nossos)

Translúcido então que somente poderá ser exigido das sociedades outro documento que não os relacionados no artigo acima transcrito caso exista expressa disposição de lei, o que inexiste como acima apresentado.

Logo, mesmo que existisse a exigência de publicação do balanço, o DNRC deveria regulamentar o assunto (regulamentação esta que inexiste) ou deveria a lei delegar ou outorgar poderes ao DNRC para que este estabelecesse as regras a serem seguidas pelas Juntas Comerciais, delegação ou outorga esta que inexiste na Lei 11.638/07.

Resta demonstrado então a inexistência de norma legal ou regulamentar que suporte eventual exigência de apresentação de comprovante da publicação das demonstrações financeiras por parte das sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações para fins de arquivamento de ato perante as Juntas Comerciais.

Isto tudo posto, considerando o princípio da mais estrita legalidade ao qual a administração pública encontra-se adstrita, e o determinado na Lei 8.934/94[11], que dentre outras coisas dispõe sobre o registro público de empresas mercantis e atividades afins, a qual é regulamentada pelo Decreto 1.800/96[12], o conservadorismo não permite chegar a outra conclusão, senão a de que:

I – Não podem as Juntas Comerciais recusar o arquivamento dos Atos Sociais Ordinários das Sociedades de Grande Porte, que não anônimas, sob a alegação de ausência de publicação das demonstrações financeiras seja face ao disposto na legislação positiva ou face à eventual decisão proferida na ação intentada pela Abio;
II – Caso Sociedades de Grande Porte, que não anônimas, tenham interesse em não serem compelidas a publicar suas demonstrações financeiras, devem tomar as medidas para que a ação intentada pela Abio seja julgada improcedente, pois esta demanda pode por via transversa gerar uma decisão judicial manipulativa aditiva [13], criando assim uma obrigação atualmente inexistente na legislação pátria positiva para as Sociedades de Grande Porte, que não anônimas.

Vale registrar que, com base nos argumentos apresentados neste trabalho, a 4ª Turma de Vogais, da Junta Comercial do Estado de Minas Gerais, reformando decisão a quo, determinou por unanimidade, em 15 de janeiro de 2014, o arquivamento de reunião ordinária de cotistas de Sociedade de Grande Porte sem a publicação das demonstrações financeiras.


[1] Proc. nº 2008.61.00.030305-7, originário da 25ª Vara Federal de SP.

[2]“Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. (...).” (Grifou-se.)

[3] Destaca-se dentre as mencionadas decisões: “EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO. ADQUIRENTE DE BOA FÉ. PENHORA. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO. ALIENAÇÃO FEITA A ANTECESSOR DOS EMBARGANTES. INEFICÁCIA DECLARADA QUE NÃO OS ATINGE. –“A sentença faz coisa julgada as partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros” (art. 472 do CPC ). (...)” (STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 144190 SP 1997/0057317-6) (Grifou-se.)

[4] Fixa o Código Civil (Lei 10.406/02): “Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I - a União; (...)
V - as demais entidades de caráter público criadas por lei.” (Grifou-se.)

[5] Importante frisar que existe corrente que entende que os órgãos integrantes da administração pública federal (dentre estes o DNRC) devem respeitar as decisões judiciais emanadas em face da União Federal, sob pena de incorrer em desacato.

[6]“Art. 6º As juntas comerciais subordinam-se administrativamente ao governo da unidade federativa de sua jurisdição e, tecnicamente, ao DNRC, nos termos desta lei.”

[7]“Art. 7º Compete às Juntas Comerciais: (...)
IV - elaborar os respectivos Regimentos Internos e suas alterações, bem como as resoluções de caráter administrativo necessárias ao fiel cumprimento das normas legais, regulamentares e regimentais; (...)” (Grifou-se.)

[8] Instrução de Serviço n° IS/03/2010.

[9] As regras a serem adotadas para regular escrituração são determinadas pelo Decreto-Lei 486/69.

[10] O Anteprojeto de Lei e o Projeto de Lei 3.741/2000, de autoria da CVM e do Deputado Emerson Kapaz, que deu origem à Lei 11.638/07, dispunha em todas suas redações que as sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, deveriam escriturar, elaborar e publicar suas demonstrações financeiras, bem como submetê-las à auditoria, em conformidade com a Lei 6.404/76.

[11] Fixa a referida lei ao regular o Exame das Formalidades, em seu art. 40: “Todo ato, documento ou instrumento apresentado a arquivamento será objeto de exame do cumprimento das formalidades legais pela junta comercial. (...)”

[12] Regulamenta a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências.

[13] O ministro Eros Grau define, em seu voto na ADI 3.510, pág.459, a decisão com efeitos aditivos nos seguintes termos: “Note-se bem que a decisão aditiva acrescenta novo sentido normativo à lei, a fim de que determinado preceito legal seja depurado, adequado aos padrões da constitucionalidade. A esta Corte não cabe acrescentar nada à Constituição, como já se fez, indevidamente – digo-o com as vênias de estilo, ainda que não espontâneas, ainda que não partam do meu íntimo – como indevidamente foi feito no julgamento do MS 26.602. A decisão aditiva incorpora preceito novo à legislação infraconstitucional para, salvando-a de inconstitucionalidade, mantê-la em coerência com o bloco de constitucionalidadeAlgo é acrescentado ao preceito legal, a Constituição permanecendo intocada, intocável. Ao contrário, porque a decisão aditiva como que captura o preceito legal, trazendo-a para o âmbito da constitucionalidade, a força normativa da Constituição é afirmada nessas decisões” (grifos nossos). Cabe salientar que essa técnica não se confunde com a interpretação sistemática. Nesta, a decisão é tomada tendo-se em vista todo o ordenamento jurídico, que permite ao intérprete dar o significado mais adequado da norma ao caso concreto. Por outro lado, a sentença aditiva reconhece que há uma inconstitucionalidade na norma, devido a uma omissão total ou parcial, e para saná-la recorre a outras normas do ordenamento para completar o significado da norma inconstitucional, que passa, então, a estar de acordo com a Constituição.

Por Ricardo Pontes Vivacqua

Fonte: Consultor Jurídico

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