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ARTIGO TRABALHISTA

Lista suja: transparência sem processo é linchamento reputacional

Especialista pontua que erradicar o trabalho escravo não admite concessões — exige mais Direito, não menos.

24/09/2025 13:30

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Lista suja: transparência sem processo é linchamento reputacional

Lista suja: transparência sem processo é linchamento reputacional

Combatemos a escravidão contemporânea por dever constitucional e civilizatório, mas não se combate barbaridade com atalho. Quando a Administração divulga nomes em um cadastro nacional — a “lista suja” — antes de um contraditório robusto e com base em conceitos elásticos, transforma um instrumento de transparência em pena reputacional. E pena sem devido processo é linchamento, ainda que bem-intencionado. O paradoxo é conhecido: repete-se que a lista “não sanciona; apenas dá publicidade a decisões administrativas”. 

Na vida real, porém, linhas de crédito evaporam, contratos caem, mercados se fecham e a empresa vira sinônimo de culpa. O rótulo gruda antes de um juiz examinar a prova com serenidade e muito antes de se distinguir quem praticou o ilícito de quem apenas contratou um serviço ou comprou um insumo. Transparência é um valor; sem contraditório efetivo, vira castigo.

Há, além disso, um problema de operacionalização que a retórica não resolve. O Brasil adotou — corretamente — um conceito amplo de trabalho análogo ao de escravo; o problema está nas bordas: termos como “jornada exaustiva” e “condições degradantes” carecem de balizas objetivas mínimas. Onde termina o ilícito administrativo grave e começa o tipo penal? O que é “excessivo” fora de setores ou sazonalidades? Qual o padrão probatório exigido para afirmar servidão por dívida? Sem métricas claras — horas-limite, indicadores de coação, padrões verificáveis de alojamento e higiene, evidências de cerceamento de liberdade — o mesmo fato pode receber diagnósticos distintos conforme o fiscal, a região ou a pauta do dia. Segurança jurídica não é capricho técnico; é a garantia de que o selo de infâmia não dependerá do olho de quem autua.

Também não há como normalizar uma responsabilização em cadeia tratada como cheque em branco. Responsabilizar quem explora trabalhadores é óbvio; outra coisa é punir automaticamente quem contrata ou compra sem prova de culpa in eligendo ou in vigilando. O princípio da legalidade exige previsão clara; o devido processo (art. 5º, LIV e LV) exige contraditório real; a presunção de inocência (art. 5º, LVII) repele inversões confortáveis; e a personalidade da pena (art. 5º, XLV) impede que a punição passe à pessoa que não praticou o fato. A jurisprudência sobre terceirização — ADC 16, ADPF 324, RE 958.252 e, sobretudo, o Tema 246 (RE 760.931) — já sinalizou que não há responsabilidade automática do contratante: é preciso provar negligência na fiscalização. Transpor essa lógica para ilícitos graves na cadeia produtiva é coerente com o Estado de Direito: culpa provada, não presumida.

A Lei da Liberdade Econômica reforça esse vetor. Não se trata de blindagem empresarial, e sim de previsibilidade regulatória e vedação a abusos. Se o Estado pretende irradiar efeitos econômicos devastadores a partir de um cadastro, que o faça por lei, com critérios objetivos e previamente conhecidos. Portarias organizam procedimentos; não criam, por via oblíqua, uma quase-sanção de efeitos massivos apoiada em tipos abertos. Dizer que a lista não é pena não muda o fato de que, para quem a sofre, os efeitos são punitivos — e, por isso mesmo, exigem lastro jurídico sólido e rito de defesa que não seja pro forma.

“Mas o STF validou a lista suja.” Sim: validou como instrumento de publicidade de decisões administrativas definitivas e sublinhou o combate à escravidão como valor constitucional máximo. Isso não autoriza atalhos. O próprio fundamento do Tribunal — transparência, não sanção — cobra rigor processual e comprovação sólida. Se, no caso concreto, o próprio Executivo avoca processos reconhecendo o impacto econômico de uma inclusão, admite que não estamos diante de banalidade burocrática. Publicidade que produz efeitos típicos de pena sem janela judicial efetiva de tutela de urgência transforma a transparência em estigma e a política pública em tribunal de reputações.

O custo social do atalho também precisa entrar na conta. A cada inclusão apressada, empregos e fornecedores idôneos são atingidos; cadeias inteiras sofrem efeito dominó; o combate ao trabalho escravo perde legitimidade quando confunde pressão moral com certeza jurídica. Compliance sério vira culpa presumida; boa-fé vira omissão fabricada; o risco regulatório incentiva a informalidade — e é exatamente aí que as violações prosperam. Se queremos empresas vigilantes e cadeias limpas, o caminho é o oposto do atalho: lei formal, critérios objetivos e contraditório pleno.

Isso significa, em primeiro lugar, positivar parâmetros. Uma lei que estruture o cadastro deve definir, de modo operacional, quando há jornada exaustiva e condições degradantes, quais são os indicadores de coação e de servidão por dívida, como se distribui o ônus da prova e que evidências mínimas devem embasar a decisão administrativa. Em segundo lugar, o devido processo precisa ser real e tempestivo: audiência obrigatória, direito à produção de provas, prazo razoável e decisão técnica motivada, com publicidade apenas após a decisão final administrativa e com uma janela judicial efetiva — não retórica — para impedir exposições indevidas. Em terceiro, é preciso criar um safe harbor de due diligence: quem comprovar governança de cadeia — cláusulas contratuais de vedação, auditorias independentes, canais de denúncia, resposta rápida e remediação às vítimas — deve ter tratamento diferenciado; boa-fé não é impunidade, é critério. Em quarto, a responsabilidade em cadeia deve ser tipificada por lei, de natureza subjetiva, dependente de nexo causal e culpa demonstrada; solidariedade automática por mera posição na cadeia é atalho inconstitucional. Em quinto, a publicidade deve ser qualificada e informativa: junto com o nome, uma nota técnica com resumo das provas, espaço para resposta, plano de remediação exigido e monitoramento transparente — luz que esclarece, não holofote que queima.

No contencioso individual, a defesa responsável não romantiza ninguém, mas parte de premissas elementares: legalidade estrita quanto aos efeitos de exposição pública; devido processo com contraditório substancial e não simbólico; exigência de prova específica de negligência do tomador; proporcionalidade como antídoto a danos irreversíveis — inclusive com tutela de urgência para impedir publicidade até o julgamento de mérito —; e reafirmação da personalidade da pena para evitar a transferência punitiva a quem não praticou o ato. Isso não fragiliza a política pública; ao contrário, protege sua legitimidade e eficácia.

A “lista suja” só cumpre sua missão se for juridicamente confiável. Sem contraditório efetivo e com conceitos elásticos, viramos a chave da transparência para a execração pública. Erradicar o trabalho escravo não admite concessões — exige mais Direito, não menos. Pena sem processo não protege trabalhadores: destrói reputações e cadeias produtivas sem aumentar a justiça. O Brasil precisa de transparência que informe, due diligence que previna, remediação que repare e decisões que resistam ao escrutínio dos fatos e do Direito. O resto é ruído — e ruído, na praça pública, costuma virar pedra.

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