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Pandemia e apropriação indébita do ICMS

Em tempos de pandemia e de quarentena, a impossibilidade de se caracterizar o dolo de apropriação indébita de ICMS declarado e não pago.

25/06/2020 08:35:01

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Pandemia e apropriação indébita do ICMS

Pandemia e apropriação indébita do ICMS

No dia 18/12/2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus RHC nº 163334/SC, onde decidiu que o destaque em nota fiscal e a escrituração do ICMS na venda de mercadorias, desacompanhados do posterior pagamento do imposto aos cofres estaduais configuraria, em tese, crime de apropriação indébita tributária, prevista no artigo art. 2º, II, da Lei 8.137/1990.

Ao assim decidir, o Supremo fixou a seguinte tese com repercussão geral:

“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990”.

O Ministro Roberto Barroso, relator do caso, deu bastante ênfase, em seu voto condutor, à censurabilidade da conduta daqueles que cobram o ICMS de consumidores finais, embutido nos preços de suas mercadorias e serviços, e não o repassa aos cofres públicos, com clara e inequívoca vontade de se apropriar do que não lhe pertence, constituindo essa vontade de apropriação, que deve estar demonstrada e provada na instrução criminal, o dolo imprescindível para a caracterização do crime.

O relator ainda mencionou que, em sua visão, a oscilação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, ora reconhecendo a atipicidade de se declarar e não pagar o ICMS e ora entendendo pela configuração de crime de apropriação indébita, teria supostamente contribuído para que diversos contribuintes procurassem essa conduta (declarar e não pagar), em vez da sonegação fiscal, mediante fraude (não emissão de nota, créditos indevidos e outras tipificadas na mesma Lei 8.137/90), buscando, assim, proteger-se nessa aparente brecha legal.

Finalmente, o Ministro Barroso ainda destacou ser imprescindível para a caracterização do crime, em cada caso concreto, a prova do dolo do contribuinte (intenção autêntica e inequívoca de apropriação indébita). Assim, segundo o voto condutor da questão no STF, nem todo devedor de ICMS cometerá o delito, havendo sempre que se distinguir o inadimplente eventual do devedor contumaz.

Ainda nesse aspecto, o Ministro Barroso ainda salientou que o devedor contumaz faz da inadimplência tributária seu modus operandi, devendo se analisar concretamente, caso a caso, na fase de instrução criminal, se há ou não inadimplência reiterada, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas”, a falta de tentativa de regularização de situação fiscal, o encerramento irregular de atividades com aberturas de outras empresas.

Somente esse conjunto probatório, segundo o próprio STF, é capaz de identificar o dolo da conduta criminosa. Sem isso, não há como caracterizar o inadimplemento do contribuinte como dolo de apropriação indébita.

Pois bem, mesmo data venia não concordando com as conclusões do STF acerca da tipicidade penal da conduta em foco, analisaremos aqui, a partir dos elementos acima vistos, pontuados no próprio julgamento da Excelsa Corte, os seguintes pontos: 

a) Em primeiro lugar, em nosso entendimento, não se pode condenar contribuintes por apropriação indébita do ICMS simplesmente declarado e não pago, sem quaisquer fraudes, relativamente aos fatos geradores anteriores ao julgamento em comento, de 18/12/2019, em homenagem ao princípio da irretroatividade e da segurança jurídica. 

Com efeito, em nosso entendimento, débitos declarados e não pagos antes de 18/12 não são capazes de ensejar a persecução do empresário por crime de apropriação indébita. Isto porque, anteriormente a tal julgamento com repercussão geral, como o próprio Relator destacou, a jurisprudência sobre o tema, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, era vacilante, sendo que, somente mais recentemente, nos últimos anos, houve a construção dessa jurisprudência “pro tipicidade”, por conta do trabalho conjunto de Procuradores de Estados e do Ministério Público, unidos em prol da arrecadação.

Ou seja, antes de 18/12/19, inquestionavelmente não existia uma lei que claramente (em nosso entender nem de forma implícita) definisse a conduta de declarar débitos de ICMS e não pagá-los no prazo, como crime, sendo que, até no próprio julgamento em questão, 3 dos 11 Ministros do STF ainda consignaram que a mesma não é típica, isto é, não está prevista em lei como crime.

Sendo assim, não pode o cidadão comum, empresário (que não se pode presumir desonesto), ser apenado por uma conduta que, somente em 18/12/19, foi declarada, pela mais alta Corte do país, como um crime, e ainda depois de alguns anos com a jurisprudência em sentido contrário.

E isso, destaque-se, por mais que se entenda censurável a conduta de declaração e não pagamento, ou que haja realmente a necessidade de fechamento de uma reconhecida e verdadeira brecha legal.

Se o STF entendeu por bem fechar essa estrada aos inadimplentes, a conclusão não pode ser outra que não a atipicidade anterior ao seu julgamento, ou quando menos, a exclusão do elemento dolo em relação a fatos geradores anteriores, pois não pode se ter dolo de conduta ilegal, se a conduta não era tipificada inequivocamente como ilegal.

Por outro lado, se é certo que ninguém pode alegar a ignorância da lei, também não deixa de ser verdade que o Judiciário não pode pretender exigir a onisciência coletiva acerca do sentido que o STF atribuirá a uma norma cuja interpretação é controversa (e até contrária) até a palavra final da mais alta Corte do país.

Interpretação contrária, em nosso entendimento, viola as garantias constitucionais da irretroatividade penal, da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana.

b) As referidas conclusões do STF merecem, com premência, ser revistas por conta da pandemia da COVID-19 e das quarentenas determinadas pelos Estados

Por outro lado, as referidas conclusões do STF merecem, com premência, ser revistas, em função das notoriamente deletérias condições socioeconômicas de todas as empresas no Brasil, em especial dos contribuintes do ICMS, em razão da pandemia da COVID-19.

De fato, a pandemia e o fechamento do comércio e recessão econômicas em todas as atividades produtivas, em especial dos contribuintes do ICMS, atingiu, em cheio, a possibilidade de identificação e prova do dolo de apropriação indébita dos empresários, independentemente do seu tamanho.

Isso em relação a todos os fatos geradores, passados, contemporâneos ou futuros à pandemia, pois a paralisação de atividades em razão da quarentena decretada pelos próprios Estados, que não tem data certa para acabar, constitui obstáculo intransponível e força maior que impedem a regularidade e mesmo a tão desejada regularização fiscal pretérita de empresas.

Realmente, como o STF exigiu para caracterizar o crime de apropriação indébita, em cada caso concreto, a demonstração da existência de contumácia e de dolo de se apropriar do ICMS dos Estados, ou seja, a intenção deliberada de nunca pagar o que de direito pertence ao Fisco estadual, numa situação como a que vivenciamos, e não somente nós, como o mundo todo, é impossível de se identificar, muito menos provar, de forma inequívoca, tal intento criminoso, pois é público e notório que as empresas estão lutando para sobreviver, muitas vezes optando por manter empregos e deixando suas obrigações fiscais para momento em que a sua regularização seja factível.

Destaque-se, por oportuno, que os próprios Estados estão também requerendo judicialmente a postergação de suas obrigações para com a União, e nem se cogita de apenar administradores públicos por apropriação indébita, em razão do atraso ou do inadimplemento das mesmas.

c) Necessidade premente da flexibilização do entendimento sobre apropriação indébita do ICMS em razão da Pandemia da COVID-19

A verdade é que o Plenário do STF decidiu a questão da apropriação indébita dolosa de ICMS, pela primeira vez, criando uma verdadeira norma jurídica nova.

 Ou, quando menos, ainda que assim não se entenda, inegavelmente atribuiu à referida norma um conteúdo único novo, diverso daquele existente por vários anos, em diversas Cortes, inclusive no STJ, como salientou o próprio Ministro Roberto Barroso.

 E o fez, com todas as suas consequências jurídicas, em um determinado momento de nossa história que, embora recente, é totalmente diferente do que vivemos hoje, em razão da pandemia do novo coronavirus.  

Destarte, esse fato novo da vida não pode ser ignorado pelo STF, nem tampouco pelos diversos Juízes e Turmas criminais, merecendo, assim, levar à urgente flexibilização da interpretação aqui em comento, de 18/12/19, para que a análise da efetiva existência ou não em cada caso concreto do tão destacado dolo de apropriação indébita do ICMS seja o mais coerente possível com o contexto em que todos vivemos e tentamos sobreviver.

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