Durante as últimas décadas do século XX, especialmente a partir dos anos 1980, o mundo assistiu à integração acelerada de economias emergentes da Ásia — em especial da China — ao comércio internacional. Essa transformação teve impactos profundos sobre a inflação global.
O fenômeno ficou conhecido como “efeito desinflacionário asiático” e pode ser explicado por três principais fatores:
Mão de obra barata e abundante: A abertura econômica da China, impulsionada pelas reformas de Deng Xiaoping, ofereceu ao mundo uma nova fronteira de produção com custos extremamente baixos. Milhões de trabalhadores migraram do campo para a cidade, alimentando o setor industrial com força de trabalho barata.
A globalização das cadeias de produção: Multinacionais ocidentais terceirizaram sua produção para países como China, Vietnã, Indonésia e Bangladesh, onde os custos operacionais eram significativamente menores. Isso reduziu o custo final dos produtos industrializados, comprimindo os preços ao consumidor nos países desenvolvidos.
Efeito sobre salários e poder de barganha no Ocidente: A competição com a mão de obra asiática enfraqueceu o poder de negociação dos trabalhadores em países desenvolvidos, ajudando a conter os aumentos salariais, mesmo em momentos de crescimento econômico.
Esse conjunto de fatores funcionou como um freio estrutural à inflação por décadas, permitindo a muitos países crescer com estabilidade de preços.
A nova realidade: fim do efeito desinflacionário?
Com a pandemia de COVID-19, tensões geopolíticas e mudanças estruturais nas cadeias de suprimento, esse cenário mudou. O que antes era uma âncora desinflacionária global passou a gerar incertezas e, em alguns casos, pressões inflacionárias. Os principais vetores dessa transição são:
Envelhecimento populacional e mudança demográfica: A China está deixando de ser o país da mão de obra jovem e barata. O envelhecimento acelerado da população, combinado com uma força de trabalho em queda, está elevando os salários e, por consequência, os custos de produção.
Reorganização das cadeias globais de valor: Após os choques logísticos da pandemia e a guerra na Ucrânia, empresas começaram a repensar sua dependência da China e buscar estratégias como o nearshoring ou reshoring — trazer a produção de volta para mais perto dos centros consumidores. Essa descentralização tende a ser mais cara.
Conflitos geopolíticos e protecionismo: O aumento das tensões comerciais entre China e EUA, a guerra tecnológica e as barreiras tarifárias dificultam o livre fluxo de bens e capital, revertendo parcialmente a lógica da globalização que ajudava a manter os preços baixos.
Transição energética e políticas climáticas: Os custos da descarbonização e da transição para fontes de energia mais limpas também começam a pressionar os custos de produção globalmente.
Implicações para o futuro da política monetária
A consequência dessa mudança estrutural é que os bancos centrais, que por décadas operaram sob o conforto de uma inflação estruturalmente baixa, agora enfrentam um ambiente mais volátil. A Curva de Phillips — que relaciona inflação e desemprego — volta a ser observada com maior atenção, pois pressões inflacionárias podem surgir mesmo em contextos de crescimento moderado.
Além disso, o mundo entra em uma era de maior incerteza inflacionária, onde choques de oferta e mudanças geopolíticas desafiam a previsibilidade das economias globais. O controle da inflação exigirá mais prudência, comunicação clara dos bancos centrais e maior coordenação entre política monetária e fiscal.
Conclusão
O “efeito desinflacionário asiático” foi uma peça-chave na estabilidade de preços das últimas décadas, mas seu ciclo parece estar se encerrando. O novo cenário é mais complexo, fragmentado e caro. A globalização que ajudava a conter preços dá lugar a uma reorganização de interesses, onde eficiência cede espaço à segurança estratégica.
Com isso, governos e investidores precisam se preparar para um mundo onde inflação baixa não é mais garantida e onde a política econômica exigirá equilíbrio entre crescimento, estabilidade de preços e transformação produtiva.