Contabilidade não é apenas uma ciência de números, mas uma prática de sentido: traduz escolhas, sustenta decisões, registra a vida financeira de uma empresa com precisão e com responsabilidade. Em um país como o Brasil, em que a carga tributária é elevada e o sistema fiscal é complexo, a contabilidade ocupa um lugar estratégico, sendo justamente nesse lugar que ela revela seu verdadeiro valor: o de ser ponte entre o que é legal e o que é justo.
Planejar tributos é legítimo e nenhuma empresa deve ser forçada a pagar mais do que a lei exige. O próprio ordenamento jurídico oferece meios para reduzir a carga fiscal — seja por incentivos, regimes especiais ou reorganizações empresariais bem estruturadas; entretanto, nem toda estratégia que reduz o tributo é, por isso, ética, e é aí que a contabilidade precisa ir além da técnica.
O planejamento tributário ético se apoia na elisão fiscal — conduta lícita que busca, dentro da legalidade, formas menos onerosas de cumprir a obrigação tributária. Já a evasão fiscal, por sua vez, representa fraude, omissão, dissimulação ou simulação com o objetivo de suprimir ou reduzir tributos de forma ilícita, sabendo a contabilidade responsável identificar essa fronteira e atuar com firmeza quando ela é cruzada.
Quando uma empresa elabora um planejamento tributário, a contabilidade é chamada a participar não apenas dos cálculos, mas da análise. É ela que entende o que está sendo feito, como será registrado, e quais consequências isso poderá ter, podendo a contabilidade validar uma operação, mas também – e sobretudo – frear uma prática que caminha para a simulação, para a ocultação, para o desequilíbrio entre o dever fiscal e o ganho privado.
Nesse sentido, a contabilidade tem uma função social inegável, pois os tributos que uma empresa paga — ou deixa de pagar — afetam diretamente a sociedade, sendo os tributos que sustentam os hospitais, as escolas, a segurança, os serviços públicos; e quando uma empresa burla esse compromisso, ela transfere sua parte ao restante da coletividade. E quando a contabilidade compactua com isso, ela deixa de servir à justiça para servir ao privilégio — e pode até incorrer em responsabilidades previstas no art. 116, § único do CTN [1] e na Lei nº 12.846/2013 [2].
A base disso tudo está na própria Constituição Federal, em seu art. 170 [3], que estabelece os fundamentos da ordem econômica e afirma que esta deve estar baseada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, mas sempre atendendo à sua função social. Isso significa que o lucro é legítimo — mas não absoluto. A empresa existe em relação com o todo, e a contabilidade é o instrumento que viabiliza essa relação de forma justa, verificável e consciente, como também exposto no Código Tributário Nacional, em seu art. 113, §1º [4], que reforça que a obrigação tributária principal decorre diretamente da lei, exigindo cumprimento com clareza, sem distorções de finalidade.
Ser ético na contabilidade não é ser ingênuo, mas sim ser responsável, entendendo que cada número lançado representa uma decisão com impactos concretos, e que cada planejamento deve ser analisado não só pela economia que gera, mas pelo respeito que preserva, pois cumprir a lei não é suficiente quando o objetivo é claramente distorcer sua finalidade.
Ainda, há algo de profundamente nobre na contabilidade que atua com propósito: não se vende ao imediatismo, não se deixa dobrar por pressões internas, mantendo sua integridade mesmo quando ninguém está olhando, sendo essa contabilidade mais do que técnica: é caráter em forma de profissão.
Por fim, a contabilidade que serve à verdade constrói mais do que relatórios — constrói confiança. E a confiança, no mundo dos negócios e na vida em sociedade, é o capital mais valioso que alguém pode possuir — e que uma contabilidade orientada por princípios construtivos e responsabilidade social ajuda a edificar todos os dias, com cada decisão tomada.
[1] Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos têrmos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)
[2] Lei Anticorrupção - Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.
[3] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[4] Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.