Entre os tantos desafios que o sistema tributário brasileiro impõe ao contribuinte, um deles se destaca pela sua sutileza e peso cumulativo: as obrigações acessórias. Embora não envolvam diretamente o pagamento de tributos, são elas que exigem tempo, estrutura, organização e vigilância constante. Em muitos casos, o custo para cumprir essas exigências é maior do que o valor do imposto em si.
Desde 1966, o Código Tributário Nacional já tratava do tema com clareza. Em seu art. 113, § 2º, afirma-se que a obrigação acessória decorre da legislação e existe para viabilizar a fiscalização e arrecadação. No § 3º, o alerta é direto: se ela não for cumprida, transforma-se em obrigação principal — e o resultado é a aplicação de multas, muitas vezes automáticas.[1] Um erro de digitação ou um arquivo fora do prazo, por exemplo, pode desencadear uma penalidade financeira.
Com a Emenda Constitucional nº 132/2023, que deu início à mais ampla reforma tributária das últimas décadas, surgiu uma expectativa legítima: a de que, ao simplificar tributos, o país também simplificaria suas exigências burocráticas. Essa expectativa foi reforçada no art. 156-A, § 6º da própria emenda, que prevê que a lei complementar disciplinará regimes específicos, com foco na padronização, racionalização e simplificação do sistema.
Essa diretriz começou a se concretizar com a Lei Complementar nº 214/2025, que criou o Sistema Eletrônico de Administração Tributária [2], cuja proposta é centralizar e uniformizar as obrigações acessórias do novo modelo — em especial as vinculadas ao IBS e à CBS, os tributos que substituirão boa parte dos atuais.
Em teoria, isso representaria uma grande conquista para empresas que hoje precisam lidar com regras diferentes para cada ente federativo, mas, na prática, o cenário ainda está longe de ser claro.
Durante o longo período de transição, que pode durar até uma década, os dois sistemas — o antigo e o novo — vão coexistir, significando que, ao invés de menos obrigações, as empresas enfrentarão mais tarefas, mais cruzamentos de dados e mais riscos. A tão falada simplificação pode demorar para se concretizar, e até lá, a burocracia continuará a ser um dos maiores entraves ao ambiente de negócios.
Mais do que isso: o contribuinte brasileiro vem sendo tratado, há muito tempo, como uma extensão do próprio Estado. É ele quem coleta, organiza, processa e transmite os dados que alimentam os sistemas da Receita, sem receber nada por isso e com a obrigação de acertar sempre - um pequeno erro pode custar caro. Um sistema que exige tanto, pune muito e orienta pouco acaba sendo, na prática, um ambiente de medo e insegurança jurídica.
O problema, portanto, não está apenas na quantidade de tributos — mas na forma como o sistema exige que o contribuinte funcione como seu próprio fiscal. A função do Estado foi, silenciosamente, terceirizada para as empresas, que agora são responsáveis por manter a engrenagem tributária girando, sob pena de sanções em caso de qualquer falha.
Se a reforma tributária quiser realmente cumprir a promessa de modernizar o sistema, ela precisa ir além da mudança nas alíquotas e da fusão de impostos, revendo a cultura do excesso de formalidades, do punitivismo automático e da desconfiança crônica em relação a quem produz e gera emprego.
Simplificar é mais do que criar uma plataforma digital ou juntar tributos sob um novo nome — é libertar o contribuinte da função que nunca deveria ter assumido: a de auxiliar administrativo do Estado.
[1] Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.
[2] Art. 403. A RFB especificará sistema eletrônico próprio para o processamento e tratamento das informações, atos e procedimentos descritos nesta Lei Complementar, devendo ser reservados recursos específicos em orçamento da União a partir do ano de 2025.