Imagine o seguinte cenário: um serviço emergencial é contratado por dispensa de licitação com base no art. 75 da nova Lei nº 14.133/2021. Tudo ocorre dentro da legalidade: empenho prévio, serviço executado, nota fiscal emitida, liquidação realizada dentro da vigência da contratação, que tem prazo máximo de 30 dias.
Mas surge um problema: o pagamento não é feito dentro desses 30 dias. Pronto. A dúvida aparece: “precisamos anular o processo e fazer uma nova dispensa?”
Esse tipo de questionamento, embora comum nas administrações públicas, pode gerar retrabalho, atrasos e até riscos de responsabilização — tudo por uma interpretação equivocada da legislação.
Neste artigo, vamos analisar um caso prático que recebemos em consultoria, apresentar o fundamento legal aplicável e mostrar por que, mesmo com o pagamento realizado fora do prazo de vigência da dispensa, o processo continua regular e não exige nenhuma anulação.
O caso prático
Em um município, foi firmada uma contratação direta com base no art. 75, II, da Lei nº 14.133/2021, para execução emergencial de um serviço com vigência de 30 dias, conforme previsto na norma.
O empenho foi feito de forma prévia e regular. O serviço foi executado integralmente dentro da vigência. A nota fiscal foi apresentada tempestivamente e a liquidação da despesa ocorreu corretamente. Contudo, por insuficiência de recursos na fonte, o pagamento só pôde ser realizado após o término dos 30 dias da vigência da contratação.
Diante disso, um servidor questionou: não seria necessário anular o processo e refazer uma nova contratação com nova dispensa de licitação?
A análise técnica
A confusão nasce da interpretação de que o pagamento também deveria ocorrer dentro dos 30 dias da vigência. No entanto, a legislação não exige isso.
A Lei nº 4.320/1964, que rege a execução orçamentária e financeira, determina que:
> “O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.” (Art. 62)
E a liquidação, por sua vez:
> “Consiste na verificação do direito adquirido pelo credor, com base em documentos comprobatórios.” (Art. 63)
Ou seja, o que confere validade à despesa é a regularidade da execução do objeto, da emissão da nota fiscal e da liquidação, e não a data do pagamento.
Ainda que a boa prática administrativa recomende que o pagamento ocorra em até 30 dias após a liquidação, isso não é um prazo peremptório que invalida o processo, tampouco exige nova contratação.
O que dizem os Tribunais de Contas?
Tribunais como o TCE/MS orientam que o essencial é a comprovação de que:
✅ O empenho foi prévio;
✅ O serviço foi executado;
✅ A liquidação foi regular e dentro da vigência do contrato;
✅ O pagamento, embora posterior, ocorreu dentro do exercício financeiro ou foi inscrito como restos a pagar processado.
A eventual demora no pagamento, se justificada por insuficiência de recursos, não compromete a legalidade da contratação, nem exige a repetição do procedimento licitatório.
Conclusão
Não há obrigatoriedade legal de que o pagamento de uma contratação por dispensa de licitação com vigência de 30 dias ocorra dentro desse mesmo prazo. O que se exige é:
- Empenho prévio,
- Execução e liquidação tempestivas,
- Pagamento conforme disponibilidade orçamentária e financeira, dentro do exercício ou via restos a pagar.
Portanto, não há necessidade de anular o processo, tampouco refazê-lo, quando o único fator fora do ideal for o pagamento fora do prazo.
Referências Bibliográficas
1. BRASIL. Lei nº 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: www.planalto.gov.br
2. BRASIL. Lei nº 4.320/1964 – Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro. Disponível em: www.planalto.gov.br
3. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL (TCE/MS). Jurisprudência e pareceres sobre execução orçamentária e restos a pagar. Acesso em: 2025.
4. MANUAL DE CONTABILIDADE APLICADA AO SETOR PÚBLICO – MCASP, 11ª edição. Secretaria do Tesouro Nacional, 2024.
Por: Tiago Lima da Silva Favareto, assessor e analista contábil especializado em contabilidade pública, com experiência prática na execução orçamentária de municípios, consultoria em licitações e controle de despesas. Atua com foco em segurança jurídica e eficiência na gestão dos recursos públicos.