A imposição de uma tarifa de 50% pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros representa um evento sísmico para a economia nacional, uma onda de choque que ameaça diretamente os setores exportadores, colocando em risco receitas, cadeias de suprimentos e empregos. Em resposta a essa ameaça externa, governos estaduais, notadamente os motores industriais do país, reagiram com uma velocidade impressionante, acionando um arsenal de medidas fiscais e financeiras.
Essa reação, no entanto, precisa ser bem analisada, pois, por um lado, oferece uma injeção crítica e imediata de liquidez por meio da monetização de créditos de ICMS e de linhas de crédito subsidiado. Por outro, ressuscita o espectro da "guerra fiscal", um conflito interfederativo que cria um campo minado de riscos jurídicos e financeiros para as empresas que aceitam esses benefícios. A corrida por alívio de caixa pode, inadvertidamente, levar a passivos contingentes futuros e a complexas disputas comerciais.
Diante da crise, o governo federal articula uma resposta que se desdobra em duas frentes: uma diplomática, que busca reverter a medida, e outra interna, que prepara um plano de contingência para mitigar os danos. Essa estratégia revela uma cautela fiscal e uma preocupação com a ordem constitucional que contrastam com as ações mais audaciosas de alguns estados.
A frente diplomática e o "cardápio" de contingência
A principal estratégia federal, enfatizada por autoridades como o Vice-Presidente Geraldo Alckmin e o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, é a negociação e o diálogo para reverter ou mitigar a tarifa. Contudo, em paralelo, foi elaborado um "cardápio" de medidas de contingência, já apresentado ao Presidente.
É notável a declaração do Ministro Haddad de que isenções fiscais diretas e amplas não são a rota preferencial, sinalizando um foco em apoio mais estrutural e direcionado. Essa postura pode ser interpretada não apenas como prudência fiscal, mas também como uma sutil repreensão às iniciativas estaduais baseadas em benefícios de ICMS, reafirmando a autoridade tributária federal. O governo federal se vê, portanto, em um dilema: combater uma crise econômica externa enquanto tenta conter uma desordem fiscal interna.
O arsenal de crédito de ICMS: Uma análise comparativa dos programas Estaduais
As respostas estaduais, embora rápidas, são heterogêneas e revelam diferentes filosofias de governança econômica:
São Paulo
O Governo do Estado de São Paulo autorizou a liberação de R$ 1,5 bilhão em créditos acumulados de ICMS, por meio do programa ProAtivo. A 11ª rodada do programa ProAtivo, autorizada pela Resolução SFP nº 17/2024 e Portaria SRE nº 35/2024, disponibiliza um limite global de R$ 700 milhões para a transferência de créditos acumulados de ICMS, com um teto de R$ 30 milhões por contribuinte. O acesso, contudo, não é universal.
O programa funciona como um filtro estratégico, privilegiando empresas com classificação "A+" no programa de conformidade "Nos Conformes" e aquelas que realizaram investimentos em ativo imobilizado nos últimos 48 meses. São Paulo, portanto, usa a crise como alavanca para reforçar suas políticas de longo prazo de estímulo à conformidade fiscal e ao investimento local. É um modelo de "dinheiro por bom comportamento".
Minas Gerais
O governo mineiro anunciou a "monetização" de R$ 100 milhões em créditos de ICMS acumulados, especificamente para exportadores afetados pela tarifa. A medida foi apresentada como uma resposta emergencial e ágil. No entanto, a realidade burocrática é outra: o mecanismo regular do estado para transferência de créditos, regido pela Resolução SEF Nº 5.925/2025, fixou um limite de apenas R$ 6 milhões para o mês de julho de 2025.
Este abismo entre o anúncio político e a capacidade operacional dos canais normais cria uma incerteza crítica. As regras para acessar o fundo emergencial de R$ 100 milhões não estão detalhadas na legislação disponível, dependendo de anúncios e regulamentações futuras. O hiato entre o anúncio e a implementação legal representa um risco operacional significativo para as empresas.
Paraná
A resposta paranaense é a mais sofisticada em termos de engenharia financeira. Dentro do programa "Paraná Competitivo", o estado criou novos usos para os créditos de ICMS. Um decreto permite que empresas utilizem créditos do sistema SISCRED para quitar parcelas futuras de ICMS diferido, com uma proporção que pode chegar a 50% para dívidas de vencimento mais longo.
Outra norma autoriza a transferência de créditos de ICMS como contrapartida para a aquisição de cotas em Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) do agronegócio. O Paraná transformou um ativo fiscal ilíquido em uma ferramenta para desalavancagem e investimento setorial direcionado.
Goiás
Goiás, por sua vez, optou por uma reforma estrutural com a criação do Fundo de Estabilização Econômica (FEG), regulamentado pela Lei Complementar nº 208/2025. Com um aporte inicial de R$ 4 bilhões, o fundo foi concebido como uma "poupança pública" para mitigar os efeitos de ciclos econômicos e financiar o desenvolvimento de longo prazo. Embora catalisada pela crise atual, a iniciativa de Goiás busca construir resiliência contra choques futuros, em vez de apenas remediar os danos do presente.
O campo minado jurídico: A ressurreição da "Guerra Fiscal"
A discussão agora tem que ser o limite dos benefícios oferecidos pelos estados, para que não seja criado um passivo contingente no balanço das empresas.
A posição do STF sobre a matéria é pacífica e consolidada: qualquer benefício fiscal de ICMS concedido por um estado de forma unilateral, sem a prévia celebração de um convênio unânime no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), é inconstitucional.
Essa prática viola frontalmente o Art. 155, § 2º, inciso XII, alínea 'g', da Constituição Federal, que exige a deliberação dos estados na forma de lei complementar. O STF tem invalidado consistentemente tais leis estaduais, mesmo quando são editadas como uma "reação" a benefícios concedidos por outros estados.
A Lei Complementar 160/2017 foi concebida como um "tratado de paz" para encerrar as guerras fiscais passadas. Ela criou um mecanismo para que os estados perdoassem débitos tributários antigos e convalidassem os benefícios irregulares preexistentes, com o objetivo de restaurar a segurança jurídica. A atual onda de medidas estaduais pode representar uma completa perversão desse espírito.
Será que o STF não vai entender que os estados estão usando a crise como pretexto para iniciar uma nova guerra fiscal, gerando exatamente a insegurança jurídica que a LC 160/2017 visava eliminar?
Este cenário caótico, no entanto, pode ter uma consequência não intencional: ele pode se tornar um poderoso catalisador para o avanço da Reforma Tributária. A crise expõe a fragilidade do sistema atual do ICMS e a disfuncionalidade do processo de aprovação no CONFAZ. Os argumentos teóricos em favor de um imposto sobre valor agregado unificado (como o IBS) tornam-se intensamente práticos, dando a líderes empresariais e associações setoriais um exemplo concreto e urgente da necessidade de uma reforma definitiva.