É curioso que uma proposta de Lei Geral de Comércio Exterior, como o PL 4423/2024, consiga ser tão ambiciosa em termos de poder regulatório e, ao mesmo tempo, tão tímida quando se trata de exigir responsabilidade dos órgãos públicos envolvidos. A Receita Federal e a Alfândega ganham protagonismo no texto, com amplas atribuições para controlar, fiscalizar e decidir sobre operações internacionais. Mas os deveres mínimos que esses órgãos deveriam cumprir não aparecem, e deveriam. Não há prazos, não há garantias de transparência, não há mecanismos de responsabilização. É como se o Estado tivesse carta branca para agir.
Quem vive o dia a dia do comércio exterior sabe que o problema é complexo. E custa caro. Basta lembrar da recente paralisação dos auditores fiscais, que praticamente congelou o desembaraço aduaneiro por mais de três meses. Milhares de cargas ficaram retidas, desde medicamentos até peças industriais, enquanto o setor produtivo amargava prejuízos bilionários. E o mais revoltante — não havia qualquer obrigação legal que forçasse a manter o mínimo funcionamento. O movimento Desembaraço Zero mostrou que, sem deveres institucionais definidos, o sistema pode parar completamente e ninguém responde por isso.
O PL 4423 fala em modernização, em alinhamento com padrões internacionais, mas ignora os princípios básicos desses mesmos modelos. O Marco SAFE da Organização Mundial das Aduanas e o Acordo de Facilitação de Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC) não tratam apenas de segurança e controle. Eles exigem previsibilidade, cooperação e prestação de contas. Ignorar esses pilares é, no mínimo, incoerente. E talvez até conveniente, se pensarmos que a ausência de deveres permite ao Estado manter sua zona de conforto, sem ser incomodado por cobranças ou prazos.
Durante a fase de consulta pública, diversas entidades do setor privado alertaram para essa lacuna. Sugeriram a inclusão de obrigações mínimas, de prazos para análise, de canais de transparência. Mas essas propostas foram ignoradas ou diluídas em frases genéricas que não têm força normativa. O resultado é um projeto que concentra poder, mas não distribui responsabilidade. E isso, num país que já sofre com burocracia e lentidão institucional, é um erro grave.
Se o objetivo é construir uma lei moderna, justa e funcional, é preciso que o Estado também esteja submetido a regras. A Receita Federal e a Alfândega não podem operar como entidades soberanas, blindadas contra qualquer tipo de responsabilização. O PL 4423/2024, como está, representa uma oportunidade desperdiçada de corrigir distorções históricas e garantir que o Poder Público atue com responsabilidade, previsibilidade e respeito ao setor produtivo. Sem isso, continuaremos reféns de um sistema em que o contribuinte tem deveres e o Estado, apenas privilégios.