Durante muitas décadas, o sistema tributário brasileiro foi marcado – e criticado – por sua complexidade, instabilidade e onerosidade, características que não só alimentavam a insatisfação dos contribuintes, mas também contribuíam para um cenário de insegurança para empresas e investidores. Em meio ao avanço da Reforma Tributária, cuja regulamentação foi iniciada em janeiro deste ano, um conceito importante e pilar do processo de transição tem ganhado destaque no debate político e técnico: a neutralidade tributária.
O princípio da neutralidade, de modo objetivo, propõe que os mecanismos de tributação e seu sistema, de modo geral, não interfiram nas decisões econômicas dos agentes – empresas e pessoas –, de modo que a carga tributária não seja, portanto, um diferencial que favoreça nem prejudique determinados setores, atividades, produtos, regiões ou formas de organização.
Desta forma, deve fomentar a criação de um ambiente no qual as tomadas de decisão sejam baseadas em considerações econômicas, e não em incentivos fiscais. Resumidamente, estabelece que os tributos devem representar uma arrecadação de recursos para o Estado, sem que crie distorções no modo de produção, investimento e consumo destes agentes, a partir de um sistema mais justo, eficiente e previsível.
Nesse sentido, boa parte das discussões acerca do conceito vão na direção de questionar sua efetividade: trata-se de um valor normativo que pode, de fato, orientar a interpretação do direito tributário ou é apenas uma diretriz econômica sujeita a contingências fiscais e políticas?Contexto, providências e desafiosNo contexto da Reforma Tributária brasileira, o princípio da neutralidade é materializado pela Emenda Constitucional 132, no Art. 156-A, § 1º – o qual estabelece que “o imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade” – e pressupõe que os novos tributos IBS e CBS sigam a ordem de um IVA, onerando, portanto, apenas a operação para consumo, de modo a não influenciar, sem justificativas, decisões econômicas de agentes e decisões referentes ao consumo.Dessa forma, desoneram-se as cadeias econômicas, com tributação apenas na operação final. Isso é uma das bases fundamentais do IVA, conforme consta em diferentes diretrizes: da OCDE, de países europeus e de outros países que também adotam a sistemática – seja em um formato mais moderno ou mais tradicional –, presente agora também na legislação do IBS e da CBS.
Até então, o entendimento geral era de que o sistema tributário vigente não apresentava neutralidade, conforme apresentado, por exemplo, pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2023. De acordo com o órgão, que avaliou a tributação sobre o consumo considerando tributos federais, estaduais e municipais entre 2015 e 2020, o modelo não era neutro, devido sobretudo às renúncias fiscais elevadas e pouco transparentes, fator que prejudica a igualdade entre setores e gera insegurança jurídica para as empresas.No atual contexto, mesmo com as proposições trazidas pela Reforma – e a internalização do princípio da neutralidade –, o cenário ainda é desafiador, principalmente ao considerarmos o cenário político, social e econômico do país. Em primeiro lugar, é relevante apontar que, em busca de se eventualmente atingir uma neutralidade efetiva, supõe-se um sistema de IVA com uma alíquota única e universal – sendo desejável, portanto, que transações sejam tributadas de modo uniforme.
O PLP 68/2024, que dá providências sobre os novos tributos e regulamenta a EC 132/23, estabelece, no mínimo, dezesseis alíquotas diferentes – sem contar possíveis variações entre estados e municípios –, o que compromete a desejada neutralidade. Nesse sentido, por exemplo, setores com menores alíquotas podem ser mais competitivos devido à tributação, e não por eficiência. Paralelamente, setores mais afetados pelas alíquotas, com custos maiores, podem ter de repassar esse valor ao consumidor final.Este cenário pode ser ainda mais crítico no mercado de bens e serviços: companhias que adquirem insumos com alíquotas variadas podem ver um acúmulo de alíquotas de IBS e CBS em cada etapa de produção, o que dificultaria a formação de preços de equilíbrio e potencializa ineficiências. E, vale ressaltar, os pontos aqui apresentados não são os únicos que representam desafios. Artigos do PLP nº 68 que discorrem sobre aproveitamento de créditos fiscais, por exemplo, também demandam análise aprofundada.Viabilidade ou promessa?
Não obstante as promessas e previsões, um cenário no qual exista e prevaleça o princípio da neutralidade ainda está distante da realidade brasileira. Tratando-se de um conceito complexo, sua concretização exige muito mais do que a simples previsão normativa: demanda coerência regulatória, disciplina política e clareza jurídica, a fim de que se reduzam litígios e se garanta segurança para contribuintes – empresas e pessoas.
Em experiências internacionais – como o da Nova Zelândia –, modelos que se aproximaram da neutralidade se consolidaram a partir de regras simples e uniformes, que garantem a estabilidade do sistema. Por ora, excesso de alíquotas, regimes especiais e exceções previstas no PLP 68/2024 sinalizam, ainda, uma direção oposta a isso.
Assim sendo, repete-se a questão: a neutralidade tributária será realmente incorporada como princípio jurídico vinculante ou se estabelecerá como retórica política, obedecendo a circunstâncias e interesses políticos e setoriais? A resposta para isso pode definir não só o sucesso de todo o processo da Reforma Tributária, mas também o nível de estabilidade, transparência e segurança que se pode esperar do sistema nos próximos anos.
Por: Marcelo Simões é sócio e cofundador da Comtax