O poder de fiscalizar decorre diretamente do poder de tributar previsto no artigo 145 da Constituição Federal. Trata-se de uma prerrogativa legítima do Estado, indispensável permitindo que o Fisco acesse e cruze informações instantaneamente, fazendo com que a fiscalização deixe de ser pontual e se torne permanente, devendo ser exercido com observância estrita aos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da eficiência administrativa e do devido processo legal. O princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição, não autoriza excessos; ao contrário, impõe ao Estado o dever de agir com racionalidade, equilíbrio e respeito aos direitos fundamentais do contribuinte.
Segundo Baleeiro, as limitações ao poder de tributar derivaram da Ciência das Finanças, e nenhuma outra Constituição excede a Constituição Brasileira de 1988 quanto ao zelo de reduzir às disposições jurídicas os princípios tributários. Para o autor, “o sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais.” Essa visão reforça que o poder de tributar, embora essencial à soberania estatal, deve operar dentro de um sistema de contenções normativas e éticas que garantam a justiça fiscal e a segurança jurídica do contribuinte.
A reforma tributária aprovada em 2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 alterou profundamente essa relação entre Fisco e contribuinte. Ao criar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), substituindo cinco tributos anteriores, o legislador prometeu simplificar o sistema, reduzir custos e garantir neutralidade, entretanto, o que se vê é um processo muito mais complexo, em que a centralização administrativa e a digitalização da fiscalização produzem novos desafios e acentuam velhas desigualdades.
Antes fragmentado entre União, Estados e Municípios, o modelo de fiscalização passa agora a ser coordenado por um órgão nacional — o Comitê Gestor do IBS. A proposta parece moderna, mas esconde um problema de fundo: ao concentrar poderes, reduz-se a autonomia dos entes federativos e cria-se um sistema excessivamente uniforme, que nem sempre reflete a realidade diversa do país. O que se apresenta como padronização pode, na prática, significar o esvaziamento da capacidade local de formular políticas fiscais adequadas às necessidades regionais.
Nas lições de Grupenmacher, a relação existente entre o Estado lato sensu como poder tributante e o contribuinte é uma relação de direito e não uma relação de poder. Para a autora, é certo que os direitos fundamentais do homem, reconhecidos nas constituições e nos pactos internacionais, refletem na estipulação de tributo, limitando ou disciplinando o poder normativo do Estado. Dessa forma, a atuação fiscal não pode degenerar em dominação, mas deve permanecer dentro do campo jurídico e constitucional, preservando o equilíbrio entre autoridade e liberdade.
Outro ponto que chama atenção é a mudança na forma de fiscalizar, pois com a nova legislação, o acompanhamento das atividades econômicas passa a ser feito em tempo real. A escrituração fiscal digital se torna obrigatória para todos os contribuintes, permitindo que o Fisco acesse e cruze informações instantaneamente, deixando assim, a fiscalização de ser pontual e se torna permanente, acompanhando cada operação do contribuinte. Essa vigilância constante, embora fortaleça o combate à sonegação, exige ponderação: um sistema fiscal eficiente não pode se transformar em instrumento de intimidação.
O cumprimento das obrigações acessórias também ganha nova dimensão, e o envio correto das declarações e arquivos digitais passa a influenciar diretamente o direito ao crédito tributário. Pequenos erros formais podem gerar prejuízos imediatos, mesmo quando não há má-fé; o contribuinte precisa, portanto, investir em sistemas de controle, atualização de softwares e consultoria técnica, o que aumenta o custo de conformidade. A contabilidade, nesse contexto, deixa de ser mera formalidade para se tornar um instrumento de sobrevivência financeira.
Esse novo ambiente expõe com clareza uma desigualdade operacional que tende a se ampliar, onde grandes empresas, com equipes internas de contabilidade e compliance, conseguem absorver as novas exigências com relativa facilidade. Já micro e pequenas empresas, especialmente as enquadradas no Simples Nacional, enfrentam dificuldades concretas. Dependentes de escritórios terceirizados e recursos limitados, essas empresas sofrem mais com o custo de adaptação tecnológica e com a rigidez dos novos controles fiscais.
Imagine, por exemplo, uma pequena prestadora de serviços obrigada a implantar um sistema de escrituração eletrônica para atender às exigências do IBS e da CBS. O gasto com software, treinamento e suporte técnico pode consumir parcela significativa de seu faturamento; porém, uma grande corporação dilui o mesmo custo em sua estrutura administrativa, sem impacto relevante. O resultado é uma desigualdade prática disfarçada sob o manto da igualdade formal: todos cumprem as mesmas regras, mas nem todos têm as mesmas condições de cumpri-las.
A centralização da fiscalização também fragiliza o pacto federativo. Estados e Municípios, que antes tinham certa autonomia para ajustar sua política tributária conforme as características regionais, tornam-se dependentes das decisões do Comitê Gestor Nacional. Essa perda de autonomia tende a uniformizar realidades distintas, contrariando o princípio federativo e enfraquecendo a lógica da cooperação fiscal entre os entes.
A segurança jurídica é outro ponto de preocupação. A implementação gradual do novo sistema, prevista até 2033, cria um cenário de sobreposição de regimes e normas complementares, gerando incerteza quanto à aplicação prática das regras. Divergências interpretativas e autuações contraditórias são consequências previsíveis, e um sistema fiscal moderno deve ser estável, claro e previsível. A eficiência tecnológica, sem estabilidade normativa, se transforma em insegurança sofisticada.
Além disso, o uso crescente de algoritmos e inteligência artificial na fiscalização inaugura novos dilemas jurídicos. A automatização de auditorias e o cruzamento eletrônico de dados prometem eficiência, mas podem comprometer o devido processo legal se não houver transparência nos critérios de análise, pois um erro de sistema, ou uma falha de parametrização, pode gerar autuações indevidas sem que o contribuinte compreenda a origem do problema. É indispensável, portanto, que a eficiência tecnológica caminhe ao lado da ética e da auditabilidade, sob pena de transformar o processo fiscal em um mecanismo cego e desumano.
Para Moraes, “o devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV). Assim, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa.” Em outras palavras, a modernização fiscal não pode afastar as garantias processuais constitucionais, sob pena de transformar a eficiência em arbítrio e o controle em violação de direitos.
A verdadeira modernização tributária não se mede apenas pela automação de processos, mas pela capacidade do Estado de equilibrar controle e equidade. Um sistema fiscal eficiente é aquele que arrecada com justiça, fiscaliza com razoabilidade e respeita as diferenças entre os contribuintes. O poder de tributar deve ser exercido com a mesma responsabilidade ética que inspira o poder de julgar: ambos exigem limites, prudência e humanidade.
A reforma tributária representa, portanto, uma oportunidade de reavaliar o papel da fiscalização no Brasil, não sendo o desafio apenas arrecadar mais, mas fiscalizar melhor com transparência, previsibilidade e justiça. O futuro da fiscalização tributária dependerá menos da rigidez das normas e mais da construção de uma cultura de confiança entre Estado e contribuinte, e a tecnologia deve servir à cidadania, não à coerção, e o tributo deve financiar o Estado, mas jamais sufocar o cidadão.
Somente quando o poder de fiscalizar se tornar instrumento de equilíbrio, e não de desigualdade, a reforma tributária cumprirá seu verdadeiro propósito civilizatório: tornar o sistema tributário mais humano, justo e constitucionalmente coerente.












