A publicação das Resoluções BCB nº 519, 520 e 521, em novembro de 2025, marca a entrada definitiva do mercado de ativos virtuais no arcabouço regulatório do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Com vigência prevista para 2 de fevereiro de 2026, as normas buscam trazer maior segurança jurídica e transparência, mas impõem um nível de exigência sem precedentes para as empresas do setor.
O ponto central é a criação das Sociedades Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (SPSAVs), que passam a ser instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central.
Resolução BCB nº 520: a estrutura e o compliance
A Resolução BCB nº 520 detalha a constituição e o funcionamento das SPSAVs, classificando-as em três modalidades:
| Modalidade de SPSAV | Objeto Social Principal | Exigência de Segregação |
| Intermediárias de Ativos Virtuais | Intermediação (compra, venda, staking). | Não podem ser Custodiantes. |
| Custodiantes de Ativos Virtuais | Custódia (guarda de chaves privadas). | Não podem ser Intermediárias. |
| Corretoras de Ativos Virtuais | Intermediação e Custódia. | Podem combinar as atividades. |
O aspecto mais explicativo e relevante para o contador é a extensão das obrigações. As SPSAVs, independentemente da modalidade, são equiparadas a instituições financeiras em termos de Governança Corporativa, Controles Internos, Gestão de Riscos e, principalmente, Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLD/FT). Isso exige uma reestruturação completa para as empresas que desejam atuar legalmente, demandando a expertise contábil para a adequação.
Resolução BCB nº 519: o rigor da autorização
A Resolução BCB nº 519 estabelece os requisitos rigorosos para a autorização de funcionamento, que incluem:
- Capacidade Econômico-Financeira dos controladores.
- Viabilidade Econômico-Financeira do negócio.
- Reputação ilibada de administradores e controladores.
- Compatibilidade da Infraestrutura de TI e da Governança.
O contador consultivo será o parceiro essencial para auxiliar as empresas na comprovação desses requisitos, especialmente na demonstração da capacidade financeira e na elaboração do plano de negócios exigido.
A questão legal crucial: ativos virtuais e o mercado de câmbio
A Resolução BCB nº 521 é a que traz a maior implicação legal e o ponto de maior debate, ao incluir a prestação de serviços de ativos virtuais no contexto do mercado de câmbio.
O Art. 76-A lista as atividades que passam a ser consideradas operações cambiais, destacando-se:
Art. 76-A. Está incluída no mercado de câmbio a prestação de serviços de ativos virtuais que compreenda as seguintes atividades ou operações: (...) III - transferência de ativo virtual de ou para carteira autocustodiada que não envolva pagamento ou transferência internacional com ativos virtuais;
Análise opinativa: o fim das operações P2P não autorizadas?
O inciso III do Art. 76-A da Resolução 521, ao classificar a transferência para carteira autocustodiada como uma operação de câmbio (quando realizada por uma SPSAV), levanta uma questão jurídica de extrema relevância para o mercado P2P (Peer-to-Peer) e para o investidor individual.
A Lei nº 14.286/2021, o Novo Marco Legal do Câmbio, é clara em seu Art. 3º:
Art. 3º As operações no mercado de câmbio podem ser realizadas somente por meio de instituições autorizadas a operar nesse mercado pelo Banco Central do Brasil, observadas as condições e os limites estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil.
O risco de ilegalidade
Se a transferência de um ativo virtual para uma carteira autocustodiada (como uma hardware wallet ou carteira de software pessoal) é definida como uma operação de câmbio pela regulamentação do BCB, e se essa operação é realizada por um indivíduo (não autorizado) no contexto de uma transação P2P (compra e venda de criptoativos entre duas pessoas), surge um forte argumento de que essa transação pode ser enquadrada como uma operação de câmbio não autorizada.
Apesar de a Resolução 521 se aplicar diretamente às SPSAVs, a inclusão dessa atividade no rol de operações cambiais sinaliza a intenção do regulador de supervisionar o fluxo de ativos virtuais. O investidor que realiza uma operação P2P e, em seguida, transfere o ativo para sua carteira autocustodiada, pode estar, tecnicamente, realizando uma etapa de uma operação que o BCB classificou como de câmbio, sem a devida autorização legal.
Implicações para o contador
Para o profissional contábil, essa interpretação é um alerta máximo. É fundamental orientar os clientes sobre o risco de realizar operações P2P, que historicamente eram vistas como fora do alcance regulatório. A partir de 2026, a movimentação de ativos virtuais para carteiras autocustodiadas, mesmo que não envolva uma remessa internacional direta, pode ser interpretada como uma violação do Art. 3º da Lei nº 14.286/2021, sujeitando o indivíduo ou a empresa a penalidades severas.
A regulamentação do BCB, portanto, não apenas formaliza o mercado institucional, mas também lança uma sombra de incerteza legal sobre a prática do P2P, exigindo que o contador se posicione como um consultor de compliance e risco legal.
O papel estratégico do contador
A nova regulamentação transforma o contador em um agente de mitigação de risco legal. As exigências de governança, PLD/FT e a potencial criminalização de operações P2P não autorizadas criam uma demanda urgente por serviços especializados.
O profissional contábil deve se aprofundar nas Resoluções BCB nº 519, 520 e 521 para orientar seus clientes sobre:
- A adequação legal das operações de ativos virtuais.
- A estruturação societária e de compliance para as SPSAVs.
- O risco legal das operações P2P e a necessidade de migração para plataformas autorizadas.
- O registro correto das operações cambiais e de capitais internacionais envolvendo ativos virtuais.
A regulamentação do BCB é um divisor de águas que exige uma nova postura do mercado e, sobretudo, do profissional contábil.












