Por décadas, o sistema tributário brasileiro que incide sobre o consumo se caracterizou pela fragmentação e pela complexidade. A coexistência de tributos como ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI gerou um ambiente de insegurança jurídica, guerra fiscal entre entes federados e alto custo de conformidade para as empresas, criando essa estrutura, marcada pela cumulatividade e pela sobreposição de competências, distorções econômicas que comprometeram a competitividade do país.
Nesse ponto, vale recordar HERNANDES, ao explicar o pensamento do Professor Alcides, segundo o qual “a não cumulatividade constitui verdadeiro direito fundamental do contribuinte, pois (i) impede a incidência de tributos sobre tributos, (ii) encontra respaldo nos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da não cumulatividade e (iii) evita a oneração excessiva da atividade econômica, conferindo maior neutralidade ao sistema”. Esse entendimento reforça a necessidade de superar o modelo anterior, evidenciando que a reforma não é apenas estrutural, mas busca corrigir distorções históricas que afetavam a eficiência e a justiça fiscal.
A criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) surge como resposta concreta a esse cenário, pois ambos representam o esforço de reorganizar a tributação sobre o consumo, buscando simplicidade, neutralidade e transparência. Inspiram-se nos modelos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) amplamente utilizados em economias desenvolvidas, adaptados à realidade federativa brasileira.
A CBS e o IBS possuem natureza semelhante, embora se situem em diferentes esferas de competência. A CBS, de competência federal, substitui o PIS e a COFINS, unificando as contribuições que incidiam sobre a receita bruta, já o IBS de competência estadual e municipal reúne o ICMS e o ISS, eliminando sobreposições e conflitos de competência.
Ambos se baseiam na não cumulatividade plena, permitindo que o tributo pago em uma etapa seja compensado na seguinte, eliminando essa sistemática a incidência em cascata, tornando a carga tributária mais transparente e equitativa. O objetivo é deslocar a tributação da produção para o consumo final, preservando a competitividade das empresas e reduzindo o peso burocrático na atividade econômica. Tal compreensão dialoga com a visão de HERNANDES, que evidencia a não cumulatividade como mecanismo estruturante da eficiência econômica e da livre concorrência. Assim, a reforma consolida um ambiente tributário mais racional, no qual o fluxo econômico é respeitado e a incidência tributária se torna mais coerente com a realidade das operações.
No plano institucional, o IBS será administrado por um Comitê Gestor Nacional, com representação dos estados e municípios, assegurando uniformidade na arrecadação e distribuição. A CBS, sob gestão da União, seguirá regramento harmônico, de modo a manter coerência entre ambos os tributos e evitar distorções regionais.
O desenho da CBS e do IBS reflete um conjunto de princípios constitucionais que orientam a tributação no Estado Democrático de Direito, como isonomia tributária, capacidade contributiva, não cumulatividade, neutralidade e transparência.
É nesse ponto que a doutrina de ÁVILA se torna essencial: a segurança jurídica, para ele, é uma “norma-princípio que exige comportamentos estatais capazes de assegurar confiabilidade, calculabilidade e cognoscibilidade do Direito, permitindo ao cidadão planejar seu presente e futuro sem surpresa, frustração ou arbitrariedade”. Tal perspectiva reforça que a reforma tributária não pode ser apenas formal; ela deve garantir previsibilidade, coerência e estabilidade normativa para que seus objetivos se concretizem plenamente.
Esses fundamentos asseguram que a CBS e o IBS não sejam apenas novos tributos, mas instrumentos de racionalização e justiça fiscal, alinhados ao texto constitucional e às boas práticas internacionais.
A compreensão das hipóteses de incidência da CBS e do IBS exige uma abordagem conceitual precisa. Sob essa ótica, a CBS e o IBS têm como hipótese de incidência as operações onerosas de circulação de bens e a prestação de serviços, inclusive as realizadas por meios digitais. Quando esse fato ocorre, surge o dever jurídico de recolher o tributo. Essa análise se coaduna com o entendimento de ATALIBA, para quem a hipótese de incidência é a descrição abstrata do fato tributário na norma, enquanto o fato imponível corresponde à efetiva materialização desse evento no mundo real. Dessa forma, a distinção entre norma e fato torna-se essencial para a correta identificação da obrigação tributária e para evitar interpretações equivocadas quanto ao alcance do tributo.
A CBS incide sobre a receita auferida com operações internas e importações, enquanto o IBS recai sobre o consumo final de bens e serviços, respeitando o princípio do destino. Ambos excluem de sua base de cálculo operações não onerosas, indenizações e exportações, evidenciando a preocupação em tributar apenas manifestações reais de riqueza. Tal qual observa GUIMARÃES, a compreensão da natureza do tributo passa pelo critério da vinculação, que está intimamente ligado ao núcleo da hipótese de incidência tributária, permitindo distinguir tributos vinculados e não vinculados de acordo com o fato gerador. Esse esclarecimento contribui para delimitar adequadamente os contornos jurídicos da CBS e do IBS, evitando conflitos interpretativos e reforçando sua coerência com o modelo de IVA.
O novo modelo de tributação exige também uma leitura sob a ótica contábil.
A implementação da CBS e do IBS impõe ao profissional contábil a responsabilidade de traduzir os fatos econômicos em linguagem contábil compatível com a norma tributária, assegurando a correta apuração dos créditos e débitos, bem como a confiabilidade das demonstrações financeiras. Essa integração entre direito e contabilidade reforça a governança tributária e a segurança informacional das empresas. Nesse ponto, MARION destaca que a Contabilidade é o grande instrumento que auxilia a administração a tomar decisões, pois coleta, mensura, registra e sumariza dados econômicos em relatórios que orientam decisões estratégicas, devendo ser dinâmica, preditiva e capaz de fornecer informações, e não meros dados. Assim, o papel do contador torna-se ainda mais central, pois ele passa a ser mediador entre a realidade econômica da empresa e o novo sistema tributário baseado na não cumulatividade plena.
Apesar das virtudes do novo modelo, sua implantação traz riscos e fragilidades que merecem atenção, sendo o primeiro desafio ao período de transição, no qual coexistirão os sistemas antigos e os novos. Essa sobreposição tende a aumentar a complexidade operacional e os custos de conformidade, especialmente para micro e pequenas empresas, que enfrentarão ajustes tecnológicos e administrativos significativos.
Outro ponto sensível é a criação do Comitê Gestor Nacional do IBS, cuja atuação pode gerar centralização excessiva e tensões federativas. A repartição das receitas entre estados e municípios dependerá de critérios objetivos e transparentes; caso contrário, o sistema poderá reproduzir antigos conflitos de competência.
Também há o risco de a neutralidade econômica ser comprometida. A adoção de alíquotas uniformes pode desconsiderar peculiaridades regionais e setoriais, penalizando setores mais intensivos em mão de obra ou regiões menos desenvolvidas.
O custo tecnológico de adaptação é outro obstáculo real. A modernização dos sistemas de escrituração digital e o treinamento de equipes representam investimento considerável, o que pode contrariar o discurso de desburocratização.
A falta de clareza normativa e a demora na regulamentação podem gerar insegurança jurídica. O sucesso da reforma dependerá da uniformidade das normas infralegais e da previsibilidade na atuação dos órgãos gestores. Aqui, novamente, ressoa a advertência de ÁVILA sobre a necessidade de confiabilidade e estabilidade como pressupostos da segurança jurídica. Essa observação reforça que a eficácia prática da reforma exige estabilidade institucional e comprometimento dos entes federados para evitar contradições normativas.
A criação da CBS e do IBS simboliza uma reorganização estrutural do sistema tributário brasileiro, orientada pela justiça fiscal e pela eficiência econômica, e se bem aplicada a reforma poderá reduzir a litigiosidade, fortalecer o pacto federativo e aproximar o Brasil dos modelos internacionais de tributação sobre o consumo. Contudo, seu êxito dependerá da coerência técnica entre norma e prática, da capacitação dos profissionais contábeis e da estabilidade jurídica durante a transição.
Mais do que um rearranjo tributário, a CBS e o IBS representam um teste de maturidade institucional do Estado brasileiro — um convite à concretização prática dos princípios constitucionais que sustentam a justiça fiscal e a confiança do contribuinte.












