O Brasil vive um momento de transformação no campo tributário. O sistema, conhecido por sua complexidade e pela profusão de normas, começa a ser redesenhado pela Reforma Tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e detalhada pela Lei Complementar nº 214/2025. A promessa é de simplificação, mas o processo carrega consigo novos desafios: a necessidade de integração entre a contabilidade e o universo fiscal, e nesse contexto, a contabilidade societária deixa de ser uma ferramenta técnica limitada a registros e demonstrações, tornando-se um verdadeiro pilar de confiança, transparência e governança.
As empresas brasileiras sempre conviveram com um ambiente de insegurança jurídica tributária, havendo volume de litígios expressivo entre Fisco e contribuintes que alcançam cifras trilionárias. O problema, no entanto, não decorre apenas da legislação densa e mutável, pois em muitos casos, ele nasce dentro das próprias organizações, em registros contábeis mal estruturados, informações inconsistentes ou interpretações equivocadas que geram dúvidas sobre a legitimidade das operações. A contabilidade, quando falha, deixa brechas que o Fisco inevitavelmente explora, e o resultado é um contencioso que desgasta a empresa e compromete sua estabilidade financeira.
Com a reforma, essa realidade tende a mudar de forma significativa. O modelo do IBS e da CBS, previsto no art. 9º da Lei Complementar nº 214/2025, introduz a exigência de escrituração integrada e uniforme, aproximando de maneira definitiva os mundos contábil e fiscal, significando que o que é informado ao Fisco passa a ter origem direta nos registros contábeis, eliminando a antiga separação entre o “balanço societário” e o “livro fiscal”. Essa integração, embora positiva, exige precisão absoluta, pois qualquer erro ou omissão pode se transformar em autuação, perda de crédito tributário ou questionamento judicial.
A função do contador, diante desse novo contexto, ganha contornos estratégicos, deixando de ser o responsável apenas por apurar resultados e se torna um mediador entre a linguagem jurídica e a econômica, conduzindo as normas em práticas concretas e garantindo que as operações tenham respaldo documental e contábil adequado. Essa atuação se ancora em princípios já consagrados pelo direito, como a boa-fé objetiva, prevista no art. 113, §1º, do Código Tributário Nacional, e a veracidade das informações contábeis, estabelecida pela Lei nº 6.404/76. Ambos os princípios reforçam a ideia de que a transparência informacional é tão relevante quanto a própria adimplência fiscal.
A convergência das normas brasileiras aos padrões internacionais - IFRS e CPCs - também ampliou a responsabilidade das empresas quanto à fidedignidade de suas demonstrações. A contabilidade passou a ser não apenas um espelho da situação econômica, mas um instrumento que orienta decisões e sustenta a confiança de investidores, sócios e órgãos fiscalizadores, e no contexto atual, ela assume uma função jurídica ainda mais sensível: provar, com base em fatos e documentos, a correção das práticas tributárias adotadas. Assim, a informação contábil deixa de ter valor apenas interno e passa a constituir elemento central na defesa e na governança das empresas.
Importante destacar, que o avanço da tecnologia acentuou esse papel com sistemas como o SPED, o e-Social e a EFD-Reinf, cada lançamento é rastreável e comparável em tempo real. O cruzamento automático de dados entre Fisco, bancos e fornecedores criou um ambiente de transparência forçada, e qualquer inconsistência é facilmente identificada, assim, o profissional contábil precisa dominar não apenas as normas, mas também os sistemas que as materializam. A era digital transformou o contador em guardião da coerência entre o que é feito, o que é declarado e o que é documentado.
É inegável que o período de transição da reforma previsto para se estender até 2033 trará dificuldades. A convivência entre regimes antigos e novos tende a gerar confusão, e a falta de padronização entre entes federativos pode ampliar, e não reduzir, a litigiosidade, sendo esse o ponto mais delicado do processo: a simplificação prometida ainda conviverá com sobreposições temporárias. Será um momento de atenção redobrada, em que a qualidade das informações contábeis e a atuação técnica dos profissionais poderão fazer a diferença entre a tranquilidade fiscal e o contencioso prolongado.
Nesse novo ambiente, a transparência contábil se torna o maior diferencial competitivo, não bastando mais cumprir a legislação; é preciso demonstrar, de forma clara como cada decisão tributária foi construída e registrada. A divulgação das políticas contábeis, o detalhamento dos critérios de mensuração e a exposição das contingências deixam de ser apenas práticas recomendadas e passam a constituir uma exigência ética e de mercado. O investidor, o auditor e o próprio Fisco esperam ver coerência e consistência entre os números, pois uma empresa que comunica com clareza e mantém registros íntegros transmite segurança e reduz o risco de questionamentos.
A governança fiscal, portanto, não se resume a controles internos ou a auditorias externas, mas nasce da cultura organizacional e da forma como a contabilidade é tratada dentro da empresa. Quando o registro contábil é visto apenas como uma obrigação burocrática, o risco se amplia, mas quando ele é compreendido como instrumento de transparência e decisão, transforma-se em ativo estratégico. Integrar contabilidade, área jurídica e setor financeiro é essencial para enfrentar os novos tempos da tributação nacional.
Mais do que uma técnica, a contabilidade é hoje uma forma de linguagem institucional. É por meio dela que a empresa se comunica com o Estado e com a sociedade, revelando sua postura ética e sua solidez, precisando a informação contábil ser tempestiva e auditável; é o antídoto mais eficaz contra a desconfiança e os litígios, pois traduz o compromisso da empresa com a verdade e a responsabilidade. Em um país que busca equilíbrio entre arrecadação e competitividade, a contabilidade se torna o ponto de encontro entre legalidade e sustentabilidade.
A Reforma Tributária, apesar das incertezas que ainda provoca, trouxe uma oportunidade de amadurecimento coletivo, ao ponto em que ao exigir mais integração, mais clareza e mais controle, ela estimula uma cultura de governança que vai além da arrecadação, e é nesse processo que o contador deixa de ser um agente passivo e passa a ocupar um papel de liderança. A empresa que compreender essa mudança não apenas evitará conflitos, mas consolidará sua imagem como instituição transparente, sólida e confiável.
A informação contábil, portanto, é o novo patrimônio invisível das organizações, aquela que sustenta a reputação, protege o capital e fortalece a relação entre o contribuinte e o Estado. No cenário que se desenha, a contabilidade é mais do que um instrumento técnico, sendo a expressão madura de cidadania fiscal, e quando bem utilizada, transforma números em confiança, registros em responsabilidade e obrigações em oportunidades de construção de um ambiente empresarial mais ético e sustentável.












