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Transação tributária

Receita é autorizada a negociar diretamente com devedores; entenda polêmica

Aval para realizar a chamada transação tributária "passou a ser uma diretriz" do secretário especial da Receita; medida contraria posição histórica do órgão.

20/07/2022 09:30:01

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Receita é autorizada a negociar diretamente com seus devedores

Receita é autorizada a negociar diretamente com devedores; entenda polêmica Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

A Receita Federal ganhou, na Justiça, autorização para negociar diretamente com seus devedores a quitação de até R$ 1,3 trilhão em débitos tributários mediante descontos e parcelamentos, contrariando posição histórica do órgão.

No entanto, o aval para a Receita realizar a chamada transação tributária "passou a ser uma diretriz" do secretário especial da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, segundo o órgão informou à Folha.

"Por se tratar de um meio alternativo para solucionar as dívidas tributárias, amplamente adotado, a transação passou a ser uma diretriz pelo atual Secretário Especial da Receita Federal", diz.

A reportagem apurou que técnicos seguem críticos ao modelo, considerado um "escárnio" com contribuintes que pagaram seus tributos em dia ou tiveram de negociar sob condições menos benevolentes. 

Eles também citam o risco de a medida enfraquecer o poder de cobrança do Fisco.

Durante a tramitação do projeto, o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, questionou internamente o fato de a Receita, antes refratária aos programas de Refis, agora ter interesse na transação tributária.

A lei foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em junho deste ano, após o texto ser aprovado pelo Congresso em articulações conduzidas pessoalmente por Gomes. 

O secretário especial foi a campo, junto com membros do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), para assegurar a inclusão da proposta na Medida Provisória (MP) que concede descontos aos estudantes do Fies.

Gomes queria poder amplo para conduzir transações de qualquer valor em fase de cobrança na Receita, o que resultaria em um montante ainda maior passível de negociação.

 A proposta gerou forte reação dentro da Economia, e uma trava foi acertada: a transação só pode incluir débitos em contencioso administrativo, ou seja, que são alvo de algum litígio.

Transações tributárias

Antes da mudança, a transação tributária era uma atribuição exclusiva da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão jurídico responsável pela gestão dos débitos inscritos na dívida ativa da União —contra os quais não cabe mais contestação administrativa.

O instrumento, criado em 2020, tem permitido negociações com descontos de até 50% da dívida, conforme a capacidade de pagamento do contribuinte. O restante é parcelado em até 84 prestações.

Agora, além de incluir os créditos em fase administrativa de cobrança, as benesses foram ampliadas, com desconto de até 65% do débito e pagamento do saldo em até 120 meses.

Também foi incluída a possibilidade de quitar até 70% do valor remanescente com créditos de prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa, o que reduz o montante efetivamente pago.

Relatos nos bastidores apontam uma disputa pelos recursos arrecadados como pano de fundo para o interesse da Receita Federal em figurar entre os órgãos habilitados a negociar.

Quando a PGFN conclui uma transação, metade dos encargos recolhidos é repassada ao fundo que banca os honorários de sucumbência, uma espécie de bônus pago a servidores da área jurídica do governo.

Entre 2019 e 2021, a média mensal dos honorários subiu de R$ 6.016,18 para R$ 8.339,77. Só no ano passado, R$ 1,2 bilhão foram distribuídos a cerca de 12,3 mil servidores da área jurídica.

Parte do aumento se deve à maior arrecadação com os encargos, embora técnicos da área ressaltem que o principal fator de impulso vem dos honorários puros, recebidos no curso de outras ações judiciais.

Os servidores da Receita Federal também recebem um bônus de eficiência, mas ele ainda não foi regulamentado — por isso, segue como um valor fixo de R$ 3.000 mensais para auditores e R$ 1.800 para analistas.

Em 2017, quando o bônus foi criado, a proposta era que ele fosse financiado com recursos do Fundaf, fundo que tem como uma das fontes as multas pagas por contribuintes ao Fisco. No entanto, essa previsão foi derrubada pelo Congresso, que temia fomentar uma espécie de indústria da multa.

Críticos apontam que a mudança na lei da transação tributária pode servir para turbinar o bônus dos auditores após sua regulamentação. 

Representantes do Sindifisco negam essa motivação. Já a Receita diz que as multas não compõem a base de cálculo do bônus, mas não respondeu se isso pode vir a ocorrer futuramente.

Procurada, a PGFN não se manifestou até a publicação deste texto.

Disputa de poder pela arrecadação

A disputa de poder pela arrecadação também acabou afastando da versão final do texto dispositivos que buscavam simplificar as negociações para os devedores.

​Segundo relatos, a Procuradoria queria incluir um prazo, após pactuada a transação com o órgão jurídico, para o contribuinte listar outros débitos em fase administrativa, que seriam então incluídos no valor a ser saldado. 

A Receita resistiu em abrir mão da cobrança. Como resultado, contribuintes que devem aos dois órgãos podem precisar abrir mais de um processo.

A inclusão da Receita Federal entre os negociadores da transação tributária ainda levantou questionamentos internos sobre a legalidade da medida.

Técnicos ressaltam, reservadamente, que a Constituição prevê expressamente que a Advocacia Geral da União (AGU), diretamente ou por meio de órgãos vinculados (como a PGFN), é a instituição que representa a União judicialmente e extrajudicialmente.

A mudança na lei acaba, na prática, reconhecendo o Fisco como um novo representante da União para a realização de acordos extrajudiciais.

Há ainda o temor de questionamentos envolvendo a classificação de risco dos devedores —uma espécie de nota que sinaliza a chance de o débito ser pago. A nova lei permite que tanto a Receita Federal quanto a PGFN tenham metodologias próprias, o que pode resultar em notas divergentes.

Em resposta à Folha, o Fisco informou que a proposta é buscar uma "harmonização" com o sistema de classificação da Procuradoria.

O presidente do Sindifisco, Isac Falcão, avalia que a transação tributária só faz sentido quando aumenta as chances de recuperação dos valores devidos.

"No Brasil, a transação não é acompanhada de instrumentos adicionais de enforcement [garantia de cumprimento da lei]", critica ele, citando a ausência de punição para quem não cumpre a obrigação firmada.

Mesmo assim, ele afirma que, uma vez existindo o mecanismo da transação, "ela deve acontecer o mais próximo possível do fato gerador". "Continua [um modelo] muito ruim. Agora, dentro dessa anomalia que é a transação feita no Brasil, tinha uma outra anomalia, que é que ela só pode ser feita depois que está na Procuradoria", diz Falcão.

A Receita Federal diz que "a transação tributária difere do Refis" porque não é concedida de forma geral, mas sim individual, a partir de uma análise da situação econômica do contribuinte e outras características que reduzem o risco de inadimplência.

"Além disso, a transação para as hipóteses de débitos em contencioso reduz a litigiosidade entre o contribuinte e o Fisco, com vantagens mútuas", diz.

O órgão informa que ainda trabalha em uma estimativa de arrecadação com a transação e que, diante do tamanho do contencioso administrativo, "a tendência é que seja elevado o número de interessados".

Fonte: com informações da Folha de S.Paulo

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