Meta, LinkedIn e X recorreram na Justiça italiana, em julho, contra uma cobrança inédita de imposto sobre valor agregado (VAT, na sigla em inglês) aplicada pelas autoridades fiscais da Itália. O embate tributário, que pode ultrapassar US$ 1 bilhão em valores devidos, representa o primeiro caso em que o país europeu não alcançou acordo prévio com empresas de tecnologia dos Estados Unidos.
A disputa ocorre no contexto de um entendimento inovador por parte das autoridades fiscais italianas, que consideram o uso gratuito de plataformas digitais em troca de dados pessoais como uma transação tributável. Segundo fontes da agência Reuters, o caso poderá influenciar diretamente a política fiscal digital de toda a União Europeia (UE), composta por 27 países-membros.
Nova interpretação do VAT sobre plataformas digitais
O cerne da controvérsia está na tentativa da Itália de aplicar o imposto sobre valor agregado às interações entre usuários e plataformas digitais, mesmo sem transações monetárias envolvidas. A autoridade italiana argumenta que, ao permitir o cadastro gratuito em redes sociais em troca de dados pessoais, como nome, e-mail, localização e preferências, as empresas realizam uma operação com valor econômico mensurável.
Dessa forma, o Fisco italiano entende que essa relação se enquadra nos critérios de prestação de serviço previstos nas diretrizes do VAT europeu. Essa interpretação rompe com o entendimento tradicional de que o imposto só incide sobre pagamentos diretos por produtos ou serviços.
O caso se destaca por buscar enquadrar como operação tributável a base do modelo de negócios de empresas de tecnologia — a coleta de dados dos usuários para segmentação publicitária. Segundo especialistas em direito tributário consultados por veículos europeus, se for validada, essa tese poderá abrir precedentes para cobranças semelhantes em outros setores que utilizam dados como moeda de troca.
Valores cobrados podem ultrapassar US$ 1 bilhão
A autoridade fiscalizadora da Itália emitiu notificações formais de cobrança em março de 2025. Após o prazo legal para contestação, as três empresas norte-americanas apresentaram recursos administrativos e ingressaram com ações judiciais em julho.
De acordo com fontes ligadas ao processo:
- A Meta, controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp, poderá ser obrigada a pagar mais de US$ 1 bilhão;
- O LinkedIn, plataforma de networking profissional da Microsoft, foi autuado em aproximadamente US$ 163 milhões;
- O X (ex-Twitter) enfrenta uma cobrança de cerca de US$ 14,63 milhões.
Até o momento, nenhuma das empresas se pronunciou oficialmente sobre o teor da ação judicial.
Impacto fiscal pode atingir outros setores
O caso extrapola o escopo das redes sociais. Especialistas alertam que a tese tributária defendida pela Receita italiana pode abrir caminho para autuações contra companhias de outros segmentos, como:
- Supermercados e lojas de varejo, que oferecem cupons ou aplicativos gratuitos em troca de dados de consumidores;
- Editoras, que disponibilizam conteúdos online condicionados à aceitação de cookies;
- Companhias aéreas, que coletam dados via programas de fidelidade sem custo inicial ao usuário.
A ampliação da base de incidência do VAT sobre essas operações pode causar um aumento significativo da carga tributária sobre empresas com modelos de negócios baseados em dados.
Itália consultará Comissão Europeia sobre legalidade
Diante da complexidade do tema e de seu potencial de repercussão internacional, o governo da Itália está preparando uma consulta formal à Comissão Europeia. O objetivo é levar o debate ao Comitê de VAT, que reúne representantes fiscais dos países da UE.
A previsão é que as perguntas sejam apresentadas até novembro de 2025, com expectativa de parecer técnico até meados de 2026. Caso o comitê reconheça a validade da tese italiana, a medida poderá se transformar em diretriz comum, influenciando a legislação fiscal dos demais Estados-membros.
A legislação europeia sobre VAT já permite certa flexibilidade para interpretações nacionais, mas decisões unilaterais podem gerar conflitos internos no bloco. A harmonização das regras é fundamental para manter a competitividade e segurança jurídica no mercado comum.
Disputa ocorre em meio a tensão comercial com os EUA
O momento da cobrança adiciona um elemento geopolítico à discussão. A disputa entre a Itália e as empresas norte-americanas coincide com a retomada da guerra tarifária entre Estados Unidos e União Europeia, reacendida após o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA.
Embora centrado em produtos físicos, como aço e automóveis, o confronto comercial afeta também os serviços digitais, setor em que os EUA acumulam superávit superior a US$ 600 bilhões, segundo dados do governo norte-americano.
A taxação de empresas como Meta e X pode ser interpretada como um movimento estratégico europeu para reequilibrar a balança fiscal digital, que favorece as big techs dos Estados Unidos há mais de uma década.
Precedentes e tentativas de influenciar normas da UE
Esta não é a primeira vez que empresas de tecnologia dos EUA confrontam decisões regulatórias da União Europeia. Nos últimos anos, grandes plataformas tentaram postergar a entrada em vigor do AI Act — conjunto de regras que regula o uso da inteligência artificial no bloco europeu — sem sucesso.
A tentativa da Itália de aplicar VAT sobre a monetização de dados pode ser considerada um novo capítulo desse embate. Para especialistas, o caso testará os limites da atual estrutura fiscal da UE diante da economia digital, onde o valor está muitas vezes mais associado à informação do que à transação financeira tradicional.
O que diz a legislação europeia sobre VAT
O imposto sobre valor agregado (VAT) é um tributo amplamente adotado na União Europeia, com regras gerais determinadas por uma diretiva comum, mas com espaço para interpretações nacionais. O imposto é aplicado sobre bens e serviços, e tradicionalmente exige a presença de:
- Um pagamento em dinheiro ou equivalente;
- Um vínculo contratual entre prestador e consumidor;
- Um benefício mensurável para ambas as partes.
A tese italiana propõe reinterpretar o segundo e terceiro critérios, ao argumentar que dados pessoais possuem valor econômico equivalente ao pagamento e que a relação usuário-plataforma configura uma prestação de serviço.
Próximos passos e desdobramentos esperados
Até que a Comissão Europeia se manifeste, os processos judiciais seguem em tramitação na Itália. Caso a tese seja rejeitada, o governo italiano poderá ser obrigado a rever sua estratégia de arrecadação sobre serviços digitais.
Se for validada, outras administrações fiscais europeias poderão seguir o mesmo caminho, ampliando significativamente a incidência de VAT em setores que antes operavam com isenção parcial ou total sobre atividades digitais gratuitas.
A depender do desfecho, o tema poderá também ser levado à Corte de Justiça da União Europeia (CJUE), instância máxima para disputas fiscais e regulatórias no bloco.
Repercussão para o setor contábil
Contadores que atuam no acompanhamento tributário de empresas com operação digital na Europa devem estar atentos aos desdobramentos da disputa. A eventual confirmação da tese italiana pode exigir ajustes em práticas contábeis, estratégias de compliance fiscal e alocação de custos operacionais.
Além disso, a consolidação de uma jurisprudência sobre tributação de dados como ativos econômicos pode provocar mudanças na forma como receitas não monetárias são classificadas nas demonstrações contábeis, impactando diretamente a gestão de risco fiscal.