A função econômica do contrato vai além de uma formalidade jurídica: ela é o instrumento que garante previsibilidade, organização de riscos e eficiência na alocação de recursos entre os agentes econômicos. Em tempos de mudanças fiscais significativas — como a promovida pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 — esse papel contratual ganha ainda mais relevância, sobretudo para empresas que firmaram contratos de médio e longo prazo com base em premissas fiscais consolidadas.
A transição para o novo modelo de tributação sobre o consumo, com a substituição do ICMS, ISS, PIS e Cofins pelos tributos IBS e CBS, traz impactos relevantes à estrutura econômica dos contratos, mesmo com a promessa constitucional de neutralidade tributária.
Convivência de dois sistemas fiscais até 2033 gera insegurança contratual
Embora a neutralidade tributária esteja prevista no art. 156-A da Constituição Federal e reforçada no art. 2º da LC nº 214/2025, a convivência simultânea entre os regimes atual e novo, prevista para o período de 2026 a 2033, dificulta a mensuração precisa dos encargos fiscais aplicáveis.
Esse ambiente de transição afeta diretamente contratos firmados com base no sistema anterior, cuja distribuição de riscos, precificação e margens de rentabilidade foram estruturados a partir de regras hoje em processo de substituição. A mudança de variáveis como base de cálculo, regimes de crédito e distribuição da carga tributária pode romper com a coerência econômica originalmente pactuada.
Impacto nos contratos firmados antes e depois da reforma
Para contratos celebrados antes da LC 214/2025, a reforma pode ser considerada um evento superveniente de alta relevância, com potencial para comprometer o equilíbrio econômico-financeiro. Ainda que a reforma não altere os elementos formais do contrato, ela pode desfigurar sua função econômica, exigindo reavaliações à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da equivalência substancial.
Já os contratos firmados sob a vigência do novo sistema partem, em tese, de uma base fiscal mais estável. No entanto, a realidade é mais complexa. Elementos essenciais da CBS e do IBS, como alíquotas de referência, critérios de creditamento e regras de transição federativa, ainda estão em construção, o que impede projeções precisas de impacto tributário e pode gerar incertezas mesmo nos contratos mais recentes.
Cláusulas contratuais devem prever adaptação fiscal e reequilíbrio
Nesse cenário de instabilidade normativa e transição gradual, os contratos empresariais — especialmente aqueles de longo prazo — devem incorporar cláusulas de adaptação fiscal, prevendo ajustes automáticos ou renegociações caso haja mudanças relevantes na carga tributária.
Mecanismos como:
- Cláusulas de hardship (ônus excessivo);
- Dispositivos de renegociação por alteração legislativa;
- Critérios objetivos de reequilíbrio, como variações percentuais de tributos ou mudanças na sistemática de créditos,
são ferramentas jurídicas úteis para preservar a função econômica do contrato e evitar judicializações ou disputas arbitrais.
Oportunismo contratual e papel do Judiciário
O princípio da função econômica do contrato também deve servir como barreira ao oportunismo, entendido aqui como a utilização estratégica de lacunas ou ambiguidades contratuais para obter vantagens indevidas diante da mudança de cenário fiscal.
Contudo, a aplicação dessa lógica exige sensibilidade técnica por parte do Poder Judiciário e das câmaras arbitrais, o que nem sempre ocorre. A falta de familiaridade com os efeitos econômicos da reforma tributária pode comprometer decisões judiciais sobre revisões contratuais, reforçando a importância de cláusulas bem estruturadas e parâmetros objetivos previamente definidos.
Direito contratual e tributário devem dialogar
A tensão entre vinculação contratual e necessidade de adaptação não é nova, mas ganha contornos complexos no contexto da reforma tributária. O Direito Contratual deve dialogar com a lógica econômica dos tributos, reconhecendo que a carga tributária é uma variável estrutural nos contratos empresariais — e não um fator neutro ou acessório.
Para isso, é necessário abandonar uma visão exclusivamente formal dos contratos e adotar uma abordagem baseada em Direito & Economia, onde o foco é preservar a racionalidade e viabilidade das relações contratuais diante de ambientes regulatórios dinâmicos.
Recomendações para novos contratos na fase de transição
Diante da complexidade da reforma e da insegurança normativa que marca sua transição, empresários, contadores e assessores jurídicos devem revisar sua estratégia contratual. Entre as recomendações estão:
- Incluir cláusulas que prevejam renegociação em caso de alteração tributária relevante;
- Estabelecer mecanismos automáticos de reequilíbrio atrelados a mudanças na legislação;
- Utilizar indicadores objetivos, como percentual de aumento da carga fiscal ou alteração na base de cálculo;
- Documentar premissas fiscais adotadas na formação do contrato para facilitar comprovações futuras.
A função econômica do contrato deve ser preservada mesmo em ambientes de instabilidade regulatória, como o que se desenha com a implementação da CBS e do IBS. A reforma tributária não anula os contratos vigentes, mas impõe necessidade de revisão, adaptação e cautela na celebração de novos negócios. A racionalidade contratual, ancorada em boa-fé, previsibilidade e equilíbrio, será essencial para manter a saúde das relações empresariais ao longo da transição tributária.
Contadores, advogados e empresários devem trabalhar de forma conjunta para garantir que os contratos em vigor e os novos instrumentos firmados estejam preparados para lidar com as incertezas da reforma. Cláusulas bem redigidas podem evitar litígios e preservar o equilíbrio entre as partes.
Com informações do Jota