A reforma tributária sobre o consumo, regulamentada pela Lei Complementar nº 214/25, marca o início de uma nova estrutura fiscal no Brasil. Para as empresas, o desafio vai além da compreensão dos conceitos de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS): é necessário adequar desde já seus sistemas e processos à nova lógica de cálculo para evitar riscos jurídicos e inconsistências fiscais.
A legislação determina que ICMS e ISS não integram a base de cálculo do IBS e da CBS. Embora pareça uma regra simples, essa disposição tem efeitos significativos na formação de preços e na apuração tributária.
Base de cálculo e ordem de aplicação
Com a nova estrutura, IBS e CBS serão tributos “por fora”, ou seja, calculados sobre valores que não incluem outros tributos. A sequência correta de cálculo passa a ser: primeiro, a aplicação do ICMS ou do ISS, conforme o tipo de operação; em seguida, a incidência do IBS e da CBS sobre um valor que não contenha os tributos anteriores.
Qualquer tentativa de inverter essa lógica — ou de incluir IBS e CBS na base dos tributos atuais — não encontra respaldo legal e pode comprometer a coerência do modelo de transição.
Esse cuidado busca evitar a repetição de disputas históricas, como a que envolveu o ICMS na própria base de cálculo, questão que gerou décadas de contenciosos até ser resolvida pela Emenda Constitucional nº 33/2001. A intenção do novo sistema é justamente impedir a sobreposição de tributos e reduzir a litigiosidade.
PLP nº 16/2025 reforça segurança jurídica
Em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei Complementar nº 16/2025 tem como objetivo reforçar a clareza da norma. O texto veda expressamente a inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS, ISS e IPI durante o período de transição.
A proposta busca eliminar brechas interpretativas e garantir segurança jurídica às empresas, evitando novas disputas sobre o chamado “imposto sobre imposto”. O projeto ainda consolida o princípio da neutralidade tributária, que orienta a reforma desde a Emenda Constitucional nº 132/2023.
Neutralidade e riscos de distorção econômica
Do ponto de vista econômico, permitir a sobreposição de bases tributárias poderia gerar aumento artificial da carga tributária, sem contrapartida de valor agregado. Esse efeito romperia com o princípio da neutralidade, essencial em modelos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) adotados internacionalmente.
Com o acúmulo de tributos em diferentes etapas da cadeia, haveria impacto direto nos preços finais e perda de competitividade, especialmente em setores de margens reduzidas, como o varejo.
Por esse motivo, especialistas defendem a manutenção da separação clara entre as bases de incidência, preservando a transparência e evitando repasses indevidos ao consumidor.
ISS e ICMS: diferentes desafios na transição
No caso do Imposto sobre Serviços (ISS), a interpretação tende a ser mais simples. De acordo com a Lei Complementar nº 116/2003, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço, e como IBS e CBS são apurados “por fora”, ou seja, não estão embutidos no valor do serviço, não há razão para incluí-los na base do imposto municipal.
Já o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) envolve uma discussão mais complexa. Durante a tramitação da reforma, tanto a Câmara quanto o Senado haviam aprovado a exclusão de IBS e CBS da base de cálculo do ICMS e do ISS, mas o trecho foi suprimido pela Câmara dos Deputados em 15 de dezembro de 2023, após retorno da proposta do Senado.
Essa exclusão gerou dúvidas quanto à intenção do legislador. Alguns especialistas avaliam que a ausência do dispositivo pode indicar uma abertura para permitir a inclusão dos novos tributos na base dos antigos, o que, na prática, representaria um retrocesso em relação à neutralidade fiscal buscada pela reforma.
Debate sobre segurança jurídica e interpretação normativa
Enquanto o PLP nº 16/2025 tramita no Congresso, cresce o debate sobre os efeitos da supressão desse trecho. A dúvida central é se, ao retirar a proibição explícita, o Parlamento teria deixado margem para incidência cruzada entre os tributos antigos e os novos durante o período de coexistência dos sistemas.
Parte dos especialistas entende que somente uma previsão expressa em lei complementar ou na Constituição poderia afastar a inclusão de IBS e CBS da base do ICMS. Essa linha de raciocínio se apoia na tradição do sistema brasileiro, em que exceções precisam estar claramente descritas na norma.
Outra corrente, contudo, argumenta que a Emenda Constitucional nº 132/2023 e a LC nº 214/25 já são suficientes para estabelecer que IBS e CBS não integram o valor da operação — e, portanto, não devem ser incluídos na base de cálculo do ICMS, mesmo sem menção explícita.
Essa interpretação preserva a coerência sistêmica e a neutralidade tributária, princípios que orientam a transição ao novo modelo de tributação do consumo.
Desafios operacionais para as empresas
A discussão não se limita ao campo jurídico. Em 2025, as empresas já começam a ajustar seus sistemas de faturamento, ERPs e notas fiscais eletrônicas para atender às novas exigências.
A parametrização correta das bases de cálculo será essencial para evitar autuações, divergências contábeis e passivos tributários. Pequenos erros na ordem de aplicação dos tributos podem gerar distorções no preço final e inconsistências nas obrigações acessórias, impactando diretamente a gestão fiscal e o fluxo de caixa.
Nesse contexto, especialistas recomendam que os contribuintes acompanhem de perto a tramitação do PLP nº 16/2025 e eventuais regulamentações complementares que definam as diretrizes operacionais do IBS e da CBS.
Caminho para uma transição estável
A reforma tributária foi concebida com o objetivo de simplificar o sistema, reduzir litígios e aumentar a previsibilidade. Para que esse propósito se concretize, é fundamental que a transição seja conduzida com clareza normativa e coerência operacional.
Evitar a sobreposição de bases tributárias é condição essencial para que o novo modelo não repita os problemas do sistema atual. A manutenção da separação entre os tributos representa um passo determinante para a modernização do regime fiscal brasileiro, alinhando o país às melhores práticas internacionais de tributação do consumo.