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ARTIGO TRABALHISTA

Aprendiz de vigilante? O limite entre a lei e o bom senso

TRT-SP afasta vigilantes da cota de aprendizes para preservar segurança e adequação legal no trabalho jovem.

30/07/2025 13:30

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Justiça limita cota de aprendizes

Aprendiz de vigilante? O limite entre a lei e o bom senso

E se a lei obrigasse uma empresa de segurança armada a contratar aprendizes adolescentes como vigilantes? A imagem de um jovem aprendiz vestindo colete à prova de balas e portando arma soa absurda – e com razão. Foi para evitar esse tipo de incoerência que o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) validou recentemente uma norma coletiva excluindo a função de vigilante do cálculo da cota de aprendizes. Em outras palavras, a Justiça do Trabalho reconheceu que, dadas as peculiaridades dessa atividade, não faria sentido incluí-la na base de cálculo que determina quantos jovens aprendizes uma empresa deve contratar.

Pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), toda empresa de médio a grande porte é obrigada a contratar aprendizes em número equivalente a, no mínimo, 5% (até o máximo de 15%) dos trabalhadores cujas funções demandem formação profissional . Esse dispositivo (art. 429 da CLT) visa incentivar a inclusão de jovens no mercado de trabalho por meio de um contrato especial de aprendizagem. Já o art. 428 da CLT define que a aprendizagem é um contrato de trabalho especial destinado a jovens entre 14 e 24 anos, combinando formação teórica e prática para prepará-los profissionalmente . Trata-se, portanto, de uma política pública de educação profissional e inserção de adolescentes e jovens no mundo do trabalho.

No caso dos vigilantes, porém, esbarra-se numa contradição evidente entre a letra genérica da lei e a realidade concreta da profissão. A atividade de vigilância armada é, por natureza, incompatível com a figura do menor aprendiz . Não se trata de má vontade das empresas ou de corporativismo sindical, mas de reconhecer fatos objetivos: ser vigilante exige maioridade bem acima dos 18 anos, treinamento especializado e porte de arma – requisitos que a lei impõe exatamente para resguardar a segurança de todos. 

Por exemplo, a legislação de segurança privada exige idade mínima de 21 anos e curso de formação específico para o exercício da função de vigilante . Além disso, o Estatuto do Desarmamento condiciona o porte de armas a pessoas com mais de 25 anos . Como poderia um adolescente de 17, 18 anos – ou mesmo alguém de 20 – atuar como aprendiz numa função que legalmente ele não pode desempenhar plenamente? Seria um contrassenso exigir cotas de aprendizes em postos de trabalho que estão vedados aos menores de 18 por força de lei (a CLT proíbe o trabalho do menor em atividades perigosas, art. 405) .

Os sindicatos patronal e profissional da segurança privada, cientes dessa situação, negociaram uma solução prática e responsável: concentrar a contratação de aprendizes nas funções administrativas, excluindo as funções de risco do cálculo. Essa cláusula convencional deixou claro que a porcentagem obrigatória de aprendizes seria cumprida via setor administrativo, e não pelos vigilantes em si . Assim, protege-se a integridade dos jovens – que seguirão tendo oportunidades de aprendizagem em áreas seguras e compatíveis – ao mesmo tempo em que se ajusta a aplicação da lei às peculiaridades do setor de vigilância. 

Não se trata de “burlar” a política de aprendizagem, mas de efetivá-la com bom senso, sem distorções ou formalismos vazios. Afinal, obrigar uma empresa de segurança a atingir 5% de aprendizes contando apenas com postos de vigilância armada poderia resultar numa medida inócua: a empresa teria de criar vagas artificiais ou contratar aprendizes em áreas estranhas ao seu negócio apenas para cumprir tabelas – um cumprimento meramente numérico, desvinculado do propósito educativo real.

Do ponto de vista jurídico, a decisão do TRT-SP apoia-se firmemente no princípio da autonomia coletiva e na valorização das negociações entre patrões e empregados. Desde a Reforma Trabalhista de 2017, vigora no ordenamento o postulado da prevalência do negociado sobre o legislado em diversas matérias. O próprio Supremo Tribunal Federal, no Tema de Repercussão Geral 1046, sedimentou o entendimento de que acordos e convenções coletivas podem, considerando as necessidades setoriais, estabelecer limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente de contrapartidas, desde que não violem direitos absolutamente indisponíveis  . 

No caso dos vigilantes, o TRT entendeu que a cláusula coletiva em nada afronta direitos indisponíveis de crianças ou adolescentes, pois menores de 18 anos de fato não poderiam ser contratados como vigilantes – logo, não há “proteção” sendo removida aqui . A regra legal que veda negociação coletiva sobre direitos de menores (art. 611-B, XXIV, da CLT) não é violada, já que não se está expondo adolescentes a risco, mas justamente reconhecendo que eles não podem ocupar tais funções . 

Em outras palavras, a convenção coletiva não suprimiu a proteção legal de ninguém – ela apenas afastou uma obrigação legal em um contexto onde essa obrigação se tornava desarrazoada e sem beneficiários reais. Por isso, tanto a sentença de primeira instância quanto a 13ª Turma do TRT/SP julgaram lícita e válida a cláusula que retirou os vigilantes do cômputo da cota .

É claro que nem todos concordam com essa flexibilização. O Ministério Público do Trabalho, por exemplo, alegou que sindicatos e empresas não teriam legitimidade para “pactuar” sobre cotas de aprendizagem, argumentando tratar-se de política pública de interesse difuso que não poderia ser esvaziada pela via negocial . Setores críticos afirmam que excluir uma categoria da base de cálculo “ignora o direito fundamental à qualificação profissional de nossos adolescentes e jovens” e extrapola os limites da negociação, invadindo o terreno de ordens públicas não negociáveis . Essa crítica merece reflexão: estaríamos diante de uma renúncia a direitos trabalhistas ou de uma adequação necessária? A decisão de São Paulo, ao meu ver, demonstra que não se está negando oportunidade de formação aos jovens, mas sim evitando uma hipocrisia legal. 

Os adolescentes e jovens continuam tendo direito à profissionalização – porém em ocupações condizentes com sua segurança e desenvolvimento, não empunhando um revólver em ronda noturna. A autonomia coletiva aqui funcionou como um corretivo racional, delimitando o alcance da lei onde esta, bem intencionada, poderia gerar efeitos contraproducentes.

Em última análise, o caso dos vigilantes nos provoca a perguntar: qual é o limite da intervenção estatal sobre acordos firmados entre as partes coletivas? Quando uma lei geral choca-se com a realidade específica de um setor, é sinal de maturidade do ordenamento permitir que os próprios atores sociais negociem a solução mais equilibrada. Isso não significa abrir mão da proteção ao trabalho dos jovens – pelo contrário, significa realizá-la de forma coerente e efetiva. 

A decisão do TRT-SP reafirma que o diálogo social informado (a negociação coletiva) pode e deve aperfeiçoar a aplicação da lei, em vez de ser visto como ameaça. Provoca-nos também a refletir se a tutela estatal deve ser onipresente a ponto de desconsiderar a experiência concreta de trabalhadores e empregadores. Não seria mais sensato confiar, em certas situações, na capacidade das categorias de ajustarem a norma às suas necessidades, dentro dos limites do razoável e do respeito aos direitos fundamentais?

Em conclusão, longe de subverter a política de aprendizagem, a solução negociada – chancelada pela Justiça do Trabalho – prestigia o espírito da lei ao equilibrar inclusão social com segurança jurídica e do trabalho. Reconhecer a validade da cláusula que exclui os vigilantes do cálculo da cota de aprendizes foi um ato de bom senso e sensibilidade às especificidades do setor. 

Em vez de tratar desiguais como se fossem iguais, a decisão levou em conta as diferenças legítimas. É uma vitória da razoabilidade sobre o formalismo cego, e um convite a repensarmos até onde vai (e deve ir) o braço regulador do Estado quando a adequação setorial negociada oferece caminho para uma justiça do trabalho mais inteligente e contextualizada.

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