A forma de atualizar débitos trabalhistas no Brasil passou por uma transformação silenciosa, mas de grande impacto para as empresas. Até agosto de 2024, valia o critério definido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 58: todos os débitos trabalhistas em execução deviam ser corrigidos pela taxa Selic. Era um modelo simples de aplicar, que unificava inflação e juros em um único índice. Mas com a edição da Lei nº 14.905/2024, em vigor desde 30 de agosto do mesmo ano, inaugurou-se uma nova metodologia, que pode parecer apenas uma mudança técnica, mas que exige das empresas atenção redobrada e postura conservadora.
Pela lei, os créditos trabalhistas passaram a ser corrigidos em duas etapas. Primeiro, aplica-se a atualização monetária pela inflação oficial, medida pelo IPCA acumulado. Em seguida, somam-se os juros de mora correspondentes à chamada “taxa legal”, que nada mais é do que a diferença entre a Selic e a inflação do período. Quando essa diferença for negativa — isto é, quando a inflação superar a Selic —, os juros não são aplicados, restando apenas a correção inflacionária. Essa regra vale para todo o Judiciário, mas o Tribunal Superior do Trabalho já consolidou seu entendimento de que se aplica integralmente à Justiça do Trabalho, estabelecendo inclusive uma regra de transição: Selic até 29 de agosto de 2024 e, a partir de 30 de agosto, IPCA mais taxa legal.
À primeira vista, essa mudança não altera de forma dramática os cálculos. Em cenários normais, o resultado final do novo modelo se aproxima bastante da Selic cheia. Se a taxa Selic estiver em 10% ao ano e a inflação em 4%, a soma da correção pelo IPCA e dos juros de mora (Selic menos IPCA) resultará em um montante muito próximo aos mesmos 10% anuais. É por isso que, em condições de estabilidade, muitas empresas podem achar que a diferença é meramente cosmética. O problema é que a lei, ao separar a inflação e os juros, abre a porta para cenários em que o custo final pode ser maior do que antes.
Imagine um débito trabalhista de R$ 10.000. Se a Selic estiver em 7% ao ano e a inflação acumulada em 8%, pela regra antiga o valor atualizado seria de R$ 10.700. Já pela regra nova, como a inflação supera a Selic, os juros de mora se tornam zero, mas a correção monetária se dá integralmente pelo IPCA. O resultado: R$ 10.800. Esse é o exemplo didático de como, em contextos de inflação alta, a nova fórmula pode gerar um passivo maior do que o previsto sob a Selic cheia. O detalhe que parecia irrelevante se transforma em risco real para o caixa das empresas.
Por isso, não basta mais simplesmente aplicar os índices de correção vigentes. O que se exige é uma postura conservadora de gestão de riscos. Isso significa revisar provisões trabalhistas já registradas, fatiando os períodos conforme a regra de transição; recalcular periodicamente os passivos prováveis, sempre que houver variações relevantes de Selic e IPCA; e, sobretudo, simular cenários pessimistas, com inflação mais alta do que a projetada pelo mercado ou juros mais baixos. É esse “stress test” que dá segurança para provisionar valores realistas, evitando que um cenário adverso estoure o orçamento da empresa.
Outro ponto que não pode ser ignorado são as multas e encargos acessórios. A Justiça do Trabalho admite, em determinadas hipóteses, acréscimos como a multa de 10% prevista no CPC para débitos não quitados após a condenação definitiva, ou ainda a multa de 50% sobre verbas rescisórias não pagas no prazo legal (art. 467 da CLT). Embora essas penalidades não sejam automáticas em todos os casos, uma provisão conservadora deve sempre considerá-las como risco plausível. Afinal, a função de um passivo provisionado é justamente proteger o fluxo de caixa contra surpresas desagradáveis.
Há também a dimensão de governança. Mais do que acertar no cálculo, é essencial documentar as premissas usadas, registrar as fontes oficiais de índices, guardar versões de simulações e envolver equipes contábil, financeira e jurídica no processo. Transparência e rastreabilidade dos cálculos ajudam tanto em auditorias quanto em eventuais questionamentos de stakeholders. Além disso, acompanhar a jurisprudência do TST e eventuais mudanças legislativas é indispensável. A uniformização recente trouxe segurança, mas nada impede que novas alterações sejam feitas, sobretudo se a economia brasileira atravessar períodos de instabilidade.
No fim das contas, a atualização de débitos trabalhistas deixou de ser apenas uma operação contábil para se tornar também um exercício de gestão de risco econômico. A mensagem é direta: quem erra para mais dorme tranquilo; quem insiste em ser otimista demais pode acabar financiando o próprio otimismo com juros e inflação. A lei trouxe clareza, mas a economia traz incertezas. O papel das empresas é incorporar esse novo modelo aos seus controles internos com disciplina, conservadorismo e atenção permanente. Assim, quando a conta chegar — seja por acordo, sentença ou execução —, ela não será uma surpresa, mas apenas a confirmação de um cenário que já estava devidamente mapeado e previsto.